Pesquisar este blog

Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sábado, 19 de dezembro de 2015

PRISÃO SEM MUROS



                                                                                                 Marcus Vinicius           
Fiz minha residência de clínica médica em um grande hospital do estado de São Paulo. No segundo ano da residência, passávamos três meses em estágio na unidade de terapia intensiva (UTI). Esse setor do hospital, normalmente, é ocupado por pessoas consumidas por doenças graves, que  acabam ficando com suas características físicas muito alteradas: inchadas ou muito magras, por perda de massa muscular e gordura. Depois de um tempo, alguns ficam irreconhecíveis até mesmo para seus familiares.

Em um plantão, recebemos um pedido de vaga de um colega cirurgião plástico. Disse ele: - “Preciso de vaga para uma paciente jovem. É particular.” A bela mulher, com 28 anos de idade, havia sido submetida a uma cirurgia programada, com fins estéticos, para colocação de prótese mamária associada a peeling cirúrgico de face.

A cirurgia estava sendo realizada com sedação e analgesia, sob supervisão de um médico anestesista. O procedimento estava ocorrendo de forma tranquila, quando o cirurgião percebeu que o sangue da paciente estava mais “escuro”. O médico interrompeu a cirurgia e foi conversar com o anestesista, para entender o que estava acontecendo. Quando tirou os olhos do campo cirúrgico e procurou o colega....cadê? Pasmem! O anestesista simplesmente havia deixado a paciente à própria sorte, sob efeito de analgesia e sedação, em ventilação espontânea (sem ajuda de aparelhos).

Resumindo: a paciente teve uma parada respiratória que evoluiu para cardiorrespiratória, causada por hipoxemia(baixa oxigenação do sangue). Recebeu as manobras necessárias de reanimação cardiorrespiratória, recuperando os batimentos cardíacos e a oxigenação do sangue. Na sequência, foi encaminhada à UTI. Como não tinha nenhum antecedente mórbido, a jovem logo estabilizou o quadro clínico e foi transferida para a enfermaria.

O problema foi o tempo em que suas células cerebrais, os neurônios, foram privadas de oxigênio, na mesa de cirurgia. Isso gerou um quadro chamado de encefalopatia por hipóxia, ou seja, houve um dano cerebral grave resultante da parada cardiorrespiratória. Isso a condenou a um estado vegetativo. Pacientes nessa situação mantêm apenas as funções fisiológicas elementares, não esboçando nenhuma reação aos estímulos externos.

Imaginem: uma jovem, saudável, que se interna para fazer um procedimento estético, com baixo risco de complicações e termina em estado vegetativo porque o médico que deveria zelar pela sua segurança não estava presente.

Meu estágio após a UTI foi na enfermaria.  Tive, então,  contato durante um bom tempo com essa paciente e seus pais, que dela cuidavam muito bem. É como cuidar de um bebê adulto, porém, mais difícil,  pois ela estava restrita ao leito. Fazia feridas na pele por ficar todo o tempo deitada, tinha infecções respiratórias de repetição e se alimentava por uma sonda.

Enquanto escrevia este texto me lembrei da última vez em que os vi: a jovem, em uma cadeira de rodas, e seus pais estavam em frente a uma grande janela, no corredor da enfermaria. O sol iluminava seu rosto, ainda com algumas cicatrizes decorrentes do peeling, que havia infectado diversas vezes. Sua mãe ficava conversando e gesticulando como se explicasse alguma coisa que podia ser vista lá fora.

Difícil contar esta história, mas é uma forma de exorcizar esses fantasmas da memória. Creio que o anestesista teve seus motivos para abandonar a paciente que estava sob seus cuidados. Embora seja irregular, não é incomum que um mesmo anestesista acompanhe mais de uma cirurgia. Certamente esse médico não imaginava que algo de errado poderia acontecer, tampouco desejava que qualquer coisa de mal acontecesse àquela jovem. Quem sabe lhe faltou a consciência de que a medicina tem limites. E só há uma forma de compensar esses limites: a responsabilidade profissional. Esta, provavelmente, também tenha lhe faltado...


-o-