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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

domingo, 27 de setembro de 2020

CIÊNCIA HEGEMÔNICA E OUTROS SABERES: CADA SEITA COM SUAS REGRAS


 

CIÊNCIA HEGEMÔNICA E OUTROS SABERES: CADA SEITA COM SUAS REGRAS

                                                                                                   

Angel Mar Roman

 O senso comum é a via na qual todos trafegamos com os conhecimentos do cotidiano, acervo dinâmico que vai se atualizando continuamente, mas sempre se pautando pelo empirismo imediato e superficial. A forma tradicional de se comunicar esse tipo de conhecimento é pela oralidade. Hoje, em tempos de redes sociais, a transmissão se dá, cada vez mais, pela oralidade reproduzida na tela em textos digitados. Não há artigos científicos com os conteúdos do senso comum

  Embora estejamos necessariamente embebidos pelo senso comum,  a civilização nos obriga a transcendê-lo. Se não formos além das explicações que pairam na superficialidade de nossa compreensão, ou seja, se não questionarmos o que é mostrado como verdade única e absoluta, corremos o risco de aceitar que o mundo é plano, que iremos diminuir a violência armando a população, que os grandes e trágicos incêndios no pantanal são causados por índios e caboclos e outras nesciedades do mesmo nível.

  Por conta de uma demanda civilizacional, portanto, temos que ir além das obviedades. É assim então que,  à beira de tal via do senso comum, se instalam vários templos especializados em conhecimentos mais profundos. Vou utilizar o termo “igreja” para esses centros de saberes especializados que se comunicam com a via do senso comum, sem, contudo, se confundir com ele. Cada uma dessas igrejas tem suas crenças e liturgias específicas, que o senso comum não domina.

Igrejas são várias

  Pois bem, se formos no setor das igrejas que se dedicam a estudar as patologias humanas e seu tratamento e entrarmos, por exemplo, na Santa Madre Igreja da Biomedicina (apelidada, por Hahnemann, de “Alopatia”), veremos que ali há normas e leis para serem seguidas: um processo racional eminentemente lógico e quantitativo. Para decifrar seus códigos, há que seguir sua liturgia.

  Se entrarmos em outra igreja, por exemplo a Homeopatia, esta também tem sua própria liturgia, elaborada a partir de uma racionalidade sofisticada, que só é praticada e entendida por seus fiéis. Vamos encontrar outras possibilidades, visões e práticas em outras igrejas. Cada uma tem suas regras gramaticais, dogmas, rituais, procedimentos, quase sempre ininteligíveis aos fieis de outras correntes.

A cada visão, um gesto

  Em razão dessas especificidades litúrgicas, o objetivo de uma determinada ação terapêutica vai ser definido a partir da visão de doença, saúde e tratamento de cada igreja. Na igreja da Medicina Tradicional Chinesa, por exemplo, a meta pode ser equilibrar a energia Chi, avaliada segundo aferição dos pulsos. No enfoque da Homeopatia,  pode ser  a sensação de bem estar, como resultado do equilíbrio da energia vital. Ou, num limite de ousadia, poderíamos ouvir na igreja da Medicina Antroposófica que o resultado é atingido quando ocorre o reencontro do paciente com as tarefas cármicas de sua existência. 

  Não é difícil concluir que um ato terapêutico de uma igreja não pode ser avaliado pelos protocolos de outra igreja, pois as ferramentas de cada crença não são capazes de captar os gestos de outras visões religiosas. Os recursos e metodologias desenvolvidos por uma igreja para avaliação dos resultados de seus tratamentos são insuficientes ou inadequados pra avaliar resultados produzidos por outras igrejas.

O céu é pra todos!

  Isso se constata, por exemplo, quando um crente da biomedicina e um crente da homeopatia observam um tratamento de Psoríase. Na vigência de um tratamento homeopático (que será singular e focado no paciente, mais do que na doença isolada), em que os sintomas da pele inicialmente se exacerbem, a visão biomédica-alopática vai interpretar como piora da doença.

  Já, o homeopata vai gostar disso e, segundo sua liturgia, vai chamar de “agravação” (que precede a melhora profunda), pois é acompanhada de “sensação de bem-estar”. Por sua vez, o tratamento com corticoide, que poderia ser a opção do primeiro crente, para um homeopata ortodoxo, porém, seria “supressão” e o paciente seria castigado com o aprofundamento posterior da doença.

  Portanto, há a cosmovisão suportada pela religião da Ciência que, por ser hegemônica e normatizar a catequese escolar, pretende conter todas as outras e ser A ÚNICA. Mas é MAIS UMA forma de organizar o conhecimento das coisas e acontecimentos da vida e do mundo. 

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