Ângelo
Roman Neto
W.C.S.,
30 anos, brasileiro, curitibano, com um currículo invejável entre os maiores
bandidos de que já ouvimos falar. Traficante, estuprador, assassino, assaltante
e por aí afora.
Deu
entrada no hospital em que trabalho em estado grave. Havia trocado tiros com a
polícia. Tinha conseguido atingir um policial na perna, que foi levado também
para o mesmo hospital, porém sem gravidade. O bandido chegou em choque, havia
perdido muito sangue, estava com risco de vida iminente. Ao chegar ao
pronto-socorro, já dentro do hospital, foi atendido rapidamente pelo médico
emergencista e a equipe de enfermagem. Ele precisava de uma cirurgia de
emergência. Naquele momento, todos ali já sabiam do histórico do meliante.
Chegando
ao centro cirúrgico, foi a minha vez de abordá-lo. Já com o nível de
consciência rebaixado e em estado extremamente grave, coloquei-o sob anestesia
geral para que a cirurgia fosse realizada. Foram exatamente dez tiros. Por todo
o corpo. Enquanto a barriga era explorada, um outro médico abria o tórax. Do
outro lado estava eu, passando inúmeras bolsas de sangue, usando drogas que
tentavam manter uma estabilidade hemodinâmica, em conjunto com o cirurgião
extremamente competente. De repente, uma parada cardiorrespiratória, revertida
em minutos após massagem cardíaca e suporte ventilatório.
Foram
duas horas de cirurgia. Conseguimos trazer de volta à vida o indivíduo. Ficou
meses internado sob escolta policial. Quando teve alta, foi direto para a
penitenciária.
O
policial ferido foi atendido logo depois dos primeiros socorros, já que seu
estado não era tão grave quanto o do bandido. Passava bem e voltou a sua rotina
perigosa e corajosa de proteger os cidadãos.
Código de Ética Médica:
Art. 1 - A
Medicina é uma profissão
a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem
discriminação de qualquer natureza.
Não
foi uma única vez em que me deparei com casos como este. Já “salvei" a
vida de muitos bandidos, tão ou piores que esse. Estava com a faca e o queijo
na mão. Poderia usar o medicamento que eu quisesse para mandá-lo pro além sem
que ninguém se desse conta. Ele não sentiria nada. Morreria tranquilo, dormindo
e em paz. Já eu, não dormiria e nunca teria paz.
Quem
somos nós, médicos, para decidirmos o destino de alguém? Quem somos nós
médicos, estudiosos do corpo e da mente, das leis e dos mitos, das perdas e dos
ganhos, dos erros e acertos, para julgarmos e condenarmos alguém?
Estamos
aqui para fazer com que a vida permaneça, jamais para cessá-la. Não somos
milagrosos. Lutamos constantemente contra a morte. Baseamo-nos em evidências
científicas e nas experiências diárias, estas tão cruéis em alguns momentos que
até nos deixamos contaminar.
Penso
comigo: quantas pessoas matariam aquele bandido se estivessem no meu lugar?
Quantas delas sairiam de consciência limpa, sem remorso, jantariam com a
família depois e dormiriam em paz nas suas camas?
Um
dia desses, um impasse gerou polêmica nas redes sociais e mídias por aí. Foi
lançada a questão: se você, médico, recebesse um traficante em estado grave e
um policial ferido, porém sem muita gravidade, quem você atenderia primeiro?
Como cidadão e como médico não teria dúvida.
A
morte está presente no meu dia a dia e estou sempre aprendendo sobre ela para
poder vencê-la. Fazer da morte uma aliada nessas horas é uma desintegração do
ser médico.
Ângelo Roman Neto
· Graduação em Medicina (PUC
PR - 2009).
· Residência em
Anestesiologia (Hospital Cajuru – Curitiba PR).
· Médico Anestesiologista no
Hospital Universitário Cajuru e Hospital Vitória em Curitiba.
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