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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 5 de maio de 2017

BANDIDO BOM É BANDIDO...


Ângelo Roman Neto

W.C.S., 30 anos, brasileiro, curitibano, com um currículo invejável entre os maiores bandidos de que já ouvimos falar. Traficante, estuprador, assassino, assaltante e por aí afora.
Deu entrada no hospital em que trabalho em estado grave. Havia trocado tiros com a polícia. Tinha conseguido atingir um policial na perna, que foi levado também para o mesmo hospital, porém sem gravidade. O bandido chegou em choque, havia perdido muito sangue, estava com risco de vida iminente. Ao chegar ao pronto-socorro, já dentro do hospital, foi atendido rapidamente pelo médico emergencista e a equipe de enfermagem. Ele precisava de uma cirurgia de emergência. Naquele momento, todos ali já sabiam do histórico do meliante.
Chegando ao centro cirúrgico, foi a minha vez de abordá-lo. Já com o nível de consciência rebaixado e em estado extremamente grave, coloquei-o sob anestesia geral para que a cirurgia fosse realizada. Foram exatamente dez tiros. Por todo o corpo. Enquanto a barriga era explorada, um outro médico abria o tórax. Do outro lado estava eu, passando inúmeras bolsas de sangue, usando drogas que tentavam manter uma estabilidade hemodinâmica, em conjunto com o cirurgião extremamente competente. De repente, uma parada cardiorrespiratória, revertida em minutos após massagem cardíaca e suporte ventilatório.
Foram duas horas de cirurgia. Conseguimos trazer de volta à vida o indivíduo. Ficou meses internado sob escolta policial. Quando teve alta, foi direto para a penitenciária.
O policial ferido foi atendido logo depois dos primeiros socorros, já que seu estado não era tão grave quanto o do bandido. Passava bem e voltou a sua rotina perigosa e corajosa de proteger os cidadãos.

Código de Ética Médica:
Art. 1 - A Medicina é uma profissão a serviço da saúde do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminação de qualquer natureza.

Não foi uma única vez em que me deparei com casos como este. Já “salvei" a vida de muitos bandidos, tão ou piores que esse. Estava com a faca e o queijo na mão. Poderia usar o medicamento que eu quisesse para mandá-lo pro além sem que ninguém se desse conta. Ele não sentiria nada. Morreria tranquilo, dormindo e em paz. Já eu, não dormiria e nunca teria paz.
Quem somos nós, médicos, para decidirmos o destino de alguém? Quem somos nós médicos, estudiosos do corpo e da mente, das leis e dos mitos, das perdas e dos ganhos, dos erros e acertos, para julgarmos e condenarmos alguém?
Estamos aqui para fazer com que a vida permaneça, jamais para cessá-la. Não somos milagrosos. Lutamos constantemente contra a morte. Baseamo-nos em evidências científicas e nas experiências diárias, estas tão cruéis em alguns momentos que até nos deixamos contaminar.
Penso comigo: quantas pessoas matariam aquele bandido se estivessem no meu lugar? Quantas delas sairiam de consciência limpa, sem remorso, jantariam com a família depois e dormiriam em paz nas suas camas?
Um dia desses, um impasse gerou polêmica nas redes sociais e mídias por aí. Foi lançada a questão: se você, médico, recebesse um traficante em estado grave e um policial ferido, porém sem muita gravidade, quem você atenderia primeiro? Como cidadão e como médico não teria dúvida.
A morte está presente no meu dia a dia e estou sempre aprendendo sobre ela para poder vencê-la. Fazer da morte uma aliada nessas horas é uma desintegração do ser médico.

Ângelo Roman Neto
·      Graduação em Medicina (PUC PR - 2009). 
·      Residência em Anestesiologia (Hospital Cajuru – Curitiba PR).
·      Médico Anestesiologista no Hospital Universitário Cajuru e Hospital Vitória em Curitiba.

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