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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 24 de junho de 2016

AMOR, RESPEITO E CARINHO: REMÉDIOS PARA A ALMA



Cláudio Rogério Werka Junior

Quando no início da Faculdade de Medicina estudamos sintomas, sinais e alterações laboratoriais das doenças, aprendemos que temos de ter muito cuidado na interpretação de exames de urina quando da avaliação de pessoas com dor abdominal. Principalmente naquelas dores que se concentram abaixo do umbigo, do lado direito. Em muitas pessoas, o apêndice, quando inflamado, literalmente “gruda” no ureter direito, que também acaba por inflamar e acaba manifestando alterações na urina, muito sugestivas de infecção. O médico não atento a esse detalhe pode diagnosticar incorretamente uma apendicite como infecção urinária, com graves consequências para o paciente.
Recordo-me que, em agosto de 2009,assumi o plantão noturno em uma das UTIs em que trabalhava. A médica que estava no período da tarde me passou os casos, dando destaque à situação de um menino de 8 anos, recém-admitido na unidade, operado devido a uma apendicite perfurada (supurada). O quadro era grave: choque séptico (quando o coração e os vasos sanguíneos passam a funcionar mal pela gravidade da inflamação no organismo) e uma inflamação pulmonar.
A visita noturna aos pacientes da UTI se iniciava meia hora após a passagem do plantão, o que me permitiu conhecer os pais do menino. A conversa com eles me fez saber que o garoto havia começado a passar mal aproximadamente sete dias antes daquela noite. No começo, ele apresentava uma dor leve, abaixo do umbigo. Os pais o levaram a um Centro Municipal de Urgências Médicas (CMUM) da prefeitura, onde foi diagnosticado infecção urinária e indicado antibiótico. O menino piorou nos três dias seguintes, apresentando febre, vômitos, piora do mal-estar e da dor. Levado novamente ao CMUM, foi alterado o antibiótico, mas o rapazinho continuou piorando. Na terceira visita ao CMUM, com o quadro clínico já muito comprometido, o pediatra o encaminhou para avaliação cirúrgica no hospital. Foi diagnosticada uma apendicite e a criança encaminhada para cirurgia de emergência. 
As horas que sucederam o diálogo com os pais foram as mais difíceis de toda a minha (curta) carreira médica. O quadro clínico daquele menino se deteriorou progressivamente, não apresentando resposta clínica a nenhuma das terapias instituídas.
Permiti aos pais entrarem na UTI para vê-lo em alguns curtos momentos, mas essas visitas foram interrompidas por pioras sequenciais em um quadro clínico já desesperador. Por sorte, todos os outros doentes da unidade estavam estáveis e toda a equipe conseguiu concentrar esforços na assistência ao menino. Além do suporte da chefia da unidade, discuti o caso várias vezes ao longo da noite com o pediatra de meu filho, renomado intensivista de um hospital de Curitiba. Deu algumas sugestões, mas relatou-me que não havia mais nada a acrescentar na conduta médica.
No início da madrugada de sexta-feira,o garoto apresentou a primeira parada cardíaca, prontamente revertida. Após essa, sobrepuseram-se mais quatro. Na quinta parada cardíaca, não conseguimos reversão, mesmo após uma hora de manobras de reanimação. O garoto havia falecido.
Dei a notícia aos pais, sem precisar falar uma palavra sequer. Abracei-os e, após longos minutos de muita tristeza, recebi um agradecimento sincero pelo empenho. Garanti aos pais que seu filho não tinha visto nada ou sentido qualquer sofrimento por estar sob o efeito de sedativos e analgésicos. Caso, porém, esses remédios não tenham atuado como esperado, que o garoto tenha visualizado o empenho da equipe, ouvido as palavras de seu pai e de sua mãe e sentido todo o amor, respeito e carinho que o cercaram desde a admissão até seus derradeiros momentos, mesmo num ambiente inóspito e impessoal que é uma Unidade de Terapia Intensiva.
Após o fracasso naquela noite, pensei em parar de trabalhar com doentes críticos. Não dei plantões em UTI por algumas semanas. Após muita reflexão, optei por continuar atendendo pacientes graves. E trabalho muito estimulado até hoje em terapia intensiva e pronto-socorro.
Meu filho mais velho tem hoje a idade daquele garoto. Além da idade, tem toda a vitalidade inerente. Lembro-me do garoto, com frequência e tristeza, quando paro para ver meu menino correr e esbanjar felicidade por aí.
Infelizmente a Medicina tem limites.
-o-


Cláudio Rogério Werka Junior
·    Médico formado pela UFPR
·    Especialista em Clínica Médica e Nefrologia pelo Hospital Universitário Evangélico de Curitiba
·    Nefrologista da Clínica de Nefrologia de Joinville·    Preceptor da Residência de Clínica Médica do Hospital Municipal São José de Joinville
·    Plantonista da UTI e da Emergência Clinica do Hospital Dona Helena·    Hospitalista do Centro Hospitalar Unimed.








sexta-feira, 3 de junho de 2016

À DERIVA



Hamilton Hourneaux Pompeu 
Nas mais de duas décadas em que atuei como médico ginecologista e obstetra, entre todas as situações eticamente conflitantes que enfrentei, o aborto foi recorrente.
Se, por um lado, não instiguei pacientes a que praticassem abortos, também não tentei demover aquelas que me comunicavam sua opção de pôr fim a uma gravidez indesejada ou inoportuna, e me pautei por procurar dar algum apoio a todas que demonstravam pretender lançar mão desse recurso extremo e, na maioria das vezes, desesperado.
Dada a casualidade do atendimento, não chegava a me abalar diante da legião de mulheres desconhecidas que calhava examinar em Pronto Socorro e que me relatavam que pretendiam abortar. Ao contrário, sempre me senti em dívida com pacientes por mim acompanhadas por longo tempo e que, por alguma circunstância que somente elas tinham como ponderar, estavam decididas a fazer o mesmo. Sentia que, após anos de uma viagem conjunta na qual elas tinham me confiado a condução do barco, eu lhes faltava em um momento crucial, justamente quando atravessavam águas turbulentas, rompendo nosso vínculo de fidelidade gradativamente construído.
Confesso que não as deixei à deriva por convicção pessoal, moral ou religiosa, mas por medo de desdobramentos legais caso praticasse um ato que, salvo em situações excepcionais, é considerado crime (Código Penal, artigos 124 a 128), e eu não estava disposto a correr o risco de perder minha principal ferramenta de trabalho, meu registro no CRM, tão duramente conquistada.
No meu íntimo, nunca enxerguei essas mulheres como criminosas, até porque perdi a conta dos casos em que achei que estavam prestes a praticar um gesto de profunda coragem e lucidez diante da sua realidade de vida, mesmas qualidades que admiro em pessoas acometidas por graves doenças incuráveis que optam por suicídio assistido ou que imploram por eutanásia, quando viver vai se tornando um fardo pesado demais.
Para contornar meu mal-estar e tentar minimizar a sensação de que abandonava essas mulheres de quem até então costumava cuidar, procurei orientá-las sobre riscos, expor limites de segurança e, na medida do possível, me coloquei à disposição para reavaliá-las depois de consumado o procedimento por alguém mais corajoso, coerente ou ganancioso que eu.
Passados tantos anos e ainda remoendo meu conflito interno diante do modo como consegui conduzir essa situação limite, recebi estarrecido a lamentável notícia de que um médico atendeu uma paciente e, em seguida, a denunciou à polícia, por  ter  constatado que o motivo da sua ida ao hospital era hemorragia decorrente de um aborto provocado (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/02/1592839-medico-chama-policia-apos-atender-jovem-que-fez-aborto-na-grande-sp.shtml).
Se as circunstâncias do caso forem verídicas, além da triste atitude de não só deixar emocionalmente desamparada quem estava aos seus cuidados em momento de fragilidade, mas também procurar incriminá-la, o profissional incorreu em grave falha ética ao romper o pacto tácito de segredo que se constitui na base do relacionamento médico-paciente (Código de Ética Médica, artigo 73).
Em paralelo, prestou um grande desserviço à comunidade médica, por alarmar e deseducar outras mulheres, aumentando o risco de que omitam dos médicos que as assistem em serviços de urgência situações embaraçosas ou ilícitas, por medo de também se verem vítimas de denúncia, omissão essa que, potencialmente, prejudica diagnósticos e resultados terapêuticos.
Se alardear segredo profissional, por si só, já é conduta deplorável sob o prisma moral, chamar a polícia é absolutamente inadmissível. E, no âmbito estritamente legal, o silêncio do médico quanto às informações que conheça somente em razão de segredo profissional, mesmo quando convocado a depor como parte ou como testemunha em processo judicial, é permitido tanto pelo Código de Processo Civil (artigos 388 e 488), quanto pelo Código de Processo Penal (artigo 207). E sob o enfoque ético, a quebra do sigilo, ainda que em tais situações, é expressamente vedada (Código de Ética Médica, artigo 73, parágrafo único).
Tenhamos ou não aversão à sua ocorrência, é preciso reconhecer que o aborto provocado é um fato social muito comum, apesar da sua proibição. Diante dele, quer o médico se mova por convicção, como parece ter feito o denunciante, quer se deixe paralisar pelo medo, como fiz eu, o mínimo que dele se espera é silêncio e discrição, em respeito a quem lhe confia não somente sua vida, mas também sua intimidade.
-o-


Hamilton Hourneaux Pompeu
·    Juiz do Trabalho Substituto no TRT 2a Região – São Paulo
·    Professor de Graduação em Direito e de Pós-Graduação em Auditoria e Sistemas de Saúde
·    Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie – SP
·    Especialista em Direito Material e Processual do Trabalho pela Universidade Gama Filho - RJ
·    Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Universidade Gama Filho - RJ
·    Graduado em Medicina pela UFPR
·    Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP
·    Ginecologista e Obstetra de 1988 a 2013.