Cláudio Rogério Werka Junior
Quando no início da Faculdade de Medicina estudamos
sintomas, sinais e alterações laboratoriais das doenças, aprendemos que temos
de ter muito cuidado na interpretação de exames de urina quando da avaliação de
pessoas com dor abdominal. Principalmente naquelas dores que se concentram
abaixo do umbigo, do lado direito. Em muitas pessoas, o apêndice, quando
inflamado, literalmente “gruda” no ureter direito, que também acaba por inflamar
e acaba manifestando alterações na urina, muito sugestivas de infecção. O
médico não atento a esse detalhe pode diagnosticar incorretamente uma
apendicite como infecção urinária, com graves consequências para o paciente.
Recordo-me que, em agosto de 2009,assumi o plantão noturno em
uma das UTIs em que trabalhava. A médica que estava no período da tarde me
passou os casos, dando destaque à situação de um menino de 8 anos, recém-admitido
na unidade, operado devido a uma apendicite perfurada (supurada). O quadro era grave:
choque séptico (quando o coração e os vasos sanguíneos passam a funcionar mal
pela gravidade da inflamação no organismo) e uma inflamação pulmonar.
A
visita noturna aos pacientes da UTI se iniciava meia hora após a passagem do
plantão, o que me permitiu conhecer os pais do menino. A conversa com eles me
fez saber que o garoto havia começado a passar mal aproximadamente sete dias
antes daquela noite. No começo, ele apresentava uma dor leve, abaixo do umbigo.
Os pais o levaram a um Centro Municipal de Urgências Médicas (CMUM) da
prefeitura, onde foi diagnosticado infecção urinária e indicado antibiótico. O
menino piorou nos três dias seguintes, apresentando febre, vômitos, piora do
mal-estar e da dor. Levado novamente ao CMUM, foi alterado o antibiótico, mas o
rapazinho continuou piorando. Na terceira visita ao CMUM, com o quadro clínico
já muito comprometido, o pediatra o encaminhou para avaliação cirúrgica no hospital.
Foi diagnosticada uma apendicite e a criança
encaminhada para cirurgia de emergência.
As horas que sucederam o diálogo com os pais foram as mais
difíceis de toda a minha (curta) carreira médica. O quadro clínico daquele
menino se deteriorou progressivamente, não apresentando resposta clínica a
nenhuma das terapias instituídas.
Permiti aos pais entrarem na UTI para vê-lo em alguns curtos
momentos, mas essas visitas foram interrompidas por pioras sequenciais em um
quadro clínico já desesperador. Por sorte, todos os outros doentes da unidade
estavam estáveis e toda a equipe conseguiu concentrar esforços na assistência
ao menino. Além do suporte da chefia da unidade, discuti o caso várias vezes ao
longo da noite com o pediatra de meu filho, renomado intensivista de um
hospital de Curitiba. Deu algumas sugestões, mas relatou-me que não havia mais
nada a acrescentar na conduta médica.
No início da madrugada de sexta-feira,o garoto apresentou a
primeira parada cardíaca, prontamente revertida. Após essa, sobrepuseram-se
mais quatro. Na quinta parada cardíaca, não conseguimos reversão, mesmo após
uma hora de manobras de reanimação. O garoto havia falecido.
Dei a notícia aos pais, sem precisar falar uma palavra
sequer. Abracei-os e, após longos minutos de muita tristeza, recebi um
agradecimento sincero pelo empenho. Garanti aos pais que seu filho não tinha
visto nada ou sentido qualquer sofrimento por estar sob o efeito de sedativos e
analgésicos. Caso, porém, esses remédios não tenham atuado como esperado, que o
garoto tenha visualizado o empenho da equipe, ouvido as
palavras de seu pai e de sua mãe e sentido todo o amor, respeito e carinho que
o cercaram desde a admissão até seus derradeiros momentos, mesmo num ambiente
inóspito e impessoal que é uma Unidade de Terapia Intensiva.
Após o fracasso naquela noite, pensei em parar de trabalhar
com doentes críticos. Não dei plantões em UTI por algumas semanas. Após muita
reflexão, optei por continuar atendendo pacientes graves. E trabalho muito
estimulado até hoje em terapia intensiva e pronto-socorro.
Meu filho mais velho tem hoje a idade daquele garoto. Além
da idade, tem toda a vitalidade inerente. Lembro-me do garoto, com frequência e
tristeza, quando paro para ver meu menino correr e esbanjar felicidade por aí.
Infelizmente a Medicina tem limites.
Cláudio Rogério Werka Junior
·
Médico formado pela
UFPR
·
Especialista em
Clínica Médica e Nefrologia pelo Hospital Universitário Evangélico de Curitiba
·
Nefrologista da
Clínica de Nefrologia de Joinville·
Preceptor da
Residência de Clínica Médica do Hospital Municipal São José de Joinville
·
Plantonista da UTI e
da Emergência Clinica do Hospital Dona Helena·
Hospitalista do Centro
Hospitalar Unimed.