Fiz minha residência de clínica médica em
um grande hospital do estado de São Paulo. No segundo ano da residência, passávamos
três meses em estágio na unidade de terapia intensiva (UTI). Esse setor do hospital,
normalmente, é ocupado por pessoas consumidas por doenças graves, que acabam ficando com suas características físicas
muito alteradas: inchadas ou muito magras, por perda de massa muscular e
gordura. Depois de um tempo, alguns ficam irreconhecíveis até mesmo para seus
familiares.
Em um plantão, recebemos um pedido de vaga
de um colega cirurgião plástico. Disse ele: - “Preciso de vaga para uma
paciente jovem. É particular.” A bela mulher, com 28 anos de idade, havia sido
submetida a uma cirurgia programada, com fins estéticos, para colocação de prótese
mamária associada a peeling cirúrgico de face.
A cirurgia estava sendo realizada com sedação
e analgesia, sob supervisão de um médico anestesista. O procedimento estava
ocorrendo de forma tranquila, quando o cirurgião percebeu que o sangue da
paciente estava mais “escuro”. O médico interrompeu a cirurgia e foi conversar
com o anestesista, para entender o que estava acontecendo. Quando tirou os
olhos do campo cirúrgico e procurou o colega....cadê? Pasmem! O anestesista
simplesmente havia deixado a paciente à própria sorte, sob efeito de analgesia
e sedação, em ventilação espontânea (sem ajuda de aparelhos).
Resumindo: a paciente teve uma parada
respiratória que evoluiu para cardiorrespiratória, causada por hipoxemia(baixa
oxigenação do sangue). Recebeu as manobras necessárias de reanimação cardiorrespiratória,
recuperando os batimentos cardíacos e a oxigenação do sangue. Na sequência, foi
encaminhada à UTI. Como não tinha nenhum antecedente mórbido, a jovem logo
estabilizou o quadro clínico e foi transferida para a enfermaria.
O problema foi o tempo em que suas células
cerebrais, os neurônios, foram privadas de oxigênio, na mesa de cirurgia. Isso
gerou um quadro chamado de encefalopatia por hipóxia, ou seja, houve um dano
cerebral grave resultante da parada cardiorrespiratória. Isso a condenou a um estado
vegetativo. Pacientes nessa situação mantêm apenas as funções fisiológicas
elementares, não esboçando nenhuma reação aos estímulos externos.
Imaginem: uma jovem, saudável, que se
interna para fazer um procedimento estético, com baixo risco de complicações e
termina em estado vegetativo porque o médico que deveria zelar pela sua segurança
não estava presente.
Meu estágio após a UTI foi na
enfermaria. Tive, então, contato durante um bom tempo com essa paciente
e seus pais, que dela cuidavam muito bem. É como cuidar de um bebê adulto, porém,
mais difícil, pois ela estava restrita
ao leito. Fazia feridas na pele por ficar todo o tempo deitada, tinha infecções
respiratórias de repetição e se alimentava por uma sonda.
Enquanto escrevia este texto me lembrei da última
vez em que os vi: a jovem, em uma cadeira de rodas, e seus pais estavam em
frente a uma grande janela, no corredor da enfermaria. O sol iluminava seu
rosto, ainda com algumas cicatrizes decorrentes do peeling, que havia infectado
diversas vezes. Sua mãe ficava conversando e gesticulando como se explicasse
alguma coisa que podia ser vista lá fora.
Difícil contar esta história, mas é uma
forma de exorcizar esses fantasmas da memória. Creio que o anestesista teve
seus motivos para abandonar a paciente que estava sob seus cuidados. Embora
seja irregular, não é incomum que um mesmo anestesista acompanhe mais de uma
cirurgia. Certamente esse médico não imaginava que algo de errado poderia
acontecer, tampouco desejava que qualquer coisa de mal acontecesse àquela
jovem. Quem sabe lhe faltou a consciência de que a medicina tem limites. E só há
uma forma de compensar esses limites: a responsabilidade profissional. Esta,
provavelmente, também tenha lhe faltado...
-o-