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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

UMA DIFÍCIL DECISÃO

Ângelo Roman Neto                               
Levítico 17:14. “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado da vida.”
Esse excerto bíblico é um dos princípios das Testemunhas de Jeová para justificar o não consumo de carnes com sangue e, principalmente, a não aceitação de transfusão sanguínea.
Na minha especialidade, a Anestesiologia, cuidei de alguns pacientes Testemunhas de Jeová. Nunca tive complicação alguma, provavelmente pelo fato de os procedimentos dos quais participei como anestesista terem sido simples: não sangravam abundantemente e não ofereciam um risco maior ao paciente.

Todos os pacientes que passam no consultório com o anestesista antes do procedimento, informam tudo a respeito de sua saúde: suas comorbidades, doenças prévias, alergias, cirurgias realizadas, complicações anestésicas anteriores, enfim, uma série de informações que consideramos básicas. E nós, médicos, explicamos sobre o processo da anestesia,  inclusive sobre a possibilidade de transfusão de sangue.

Toda cirurgia, independente da complexidade, é passível de complicações. A perda maciça de sangue pode levar ao choque hemorrágico que, em muitos casos, só é revertido com a transfusão sanguínea. E como agem  os Testemunhas de Jeová que irão passar por procedimentos em que existe a possibilidade de transfusão?
Esses pacientes estão preparados para isso. Aparecem no hospital com artigos científicos, a Bíblia e, geralmente, com um advogado, caso precisem interferir juridicamente. Citam, além dos dogmas da religião, o uso da eritropoetina humana como forma de prevenir uma transfusão maciça transoperatória. 
A eritropoetina humana recombinante é um hormônio produzido naturalmente nos seres humanos, cuja função é, principalmente, regular a produção de células vermelhas do sangue, as hemácias. No pré e no pós-operatório pode ser uma alternativa à transfusão sanguínea, apresentando resultados satisfatórios em determinados casos. Porém, em cirurgias em que ocorre um sangramento abundante inesperado, a eritropoetina não é eficaz, já que sua ação começa apenas de duas a seis semanas após a administração, tempo muito longo no caso de uma emergência em situação de cirurgia.
Logo que me formei, fiz alguns plantões em um hospital de trauma, onde soube de algumas situações delicadas relacionadas ao tema. Me recordo de uma delas, muito impactante, mas que teve um final feliz. 
Era uma madrugada de inverno, corrida e agitada. Chega na emergência, trazida pelo SIATE, uma vítima de atropelamento, gravemente ferida e já entubada pelos socorristas no local do acidente. No pronto socorro, foi constatado que a vítima teria que passar por um procedimento cirúrgico de emergência.
Logo chegaram os familiares da vítima, acompanhados de um pastor, um advogado e amigos. Mesmo sabendo do estado grave do paciente disseram que ele era Testemunha de Jeová e que não deveria receber sangue. Justificaram o pedido citando a eritropoetina e excertos bíblicos.
O paciente precisava de sangue urgentemente. O que fazer?  O cirurgião chefe, com certeza, já tinha lidado com situações parecidas. Com perspicácia e rapidez admiráveis, antes de subir para a cirurgia, pegou a maca com o paciente e a levou para uma sala reservada. Lá, fechou as cortinas e a porta, pediu silêncio geral para toda a equipe e passou sangue ao paciente. Depois desse procedimento, foram para a sala de cirurgia.
Com certeza, se não tivesse sido feita a reposição de sangue, o paciente teria ido a óbito.
A cirurgia foi um sucesso. Os pais agradeceram muito o médico por ter salvado seu filho e por ter cumprido a decisão da família de não transfundir o sangue. O paciente se recuperou bem, o segredo foi mantido, o cirurgião se livrou de uma causa na justiça, e todas as pessoas ficaram preservadas, cada uma com a sua consciência. Se alguém será punido por isso algum dia, só Deus ou, se preferirem, Jeová, é quem sabe. 
-o-
Ângelo Roman Neto – Curitiba PR
· Graduação em Medicina (PUC PR - 2009).
· Residência em Anestesiologia (Hospital Cajuru).


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