Levítico
17:14. “Não
deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de
carne é seu sangue. Quem o comer será decepado da vida.”
Esse excerto bíblico é um dos
princípios das Testemunhas de Jeová para justificar o não consumo de carnes com
sangue e, principalmente, a não aceitação de transfusão sanguínea.
Na minha especialidade, a
Anestesiologia, cuidei de alguns pacientes Testemunhas de Jeová. Nunca tive
complicação alguma, provavelmente pelo fato de os procedimentos dos quais
participei como anestesista terem sido simples: não sangravam abundantemente e
não ofereciam um risco maior ao paciente.
Todos os pacientes que passam no consultório com o anestesista antes do
procedimento, informam tudo a respeito de sua saúde: suas comorbidades, doenças
prévias, alergias, cirurgias realizadas, complicações anestésicas anteriores,
enfim, uma série de informações que consideramos básicas. E nós, médicos, explicamos
sobre o processo da anestesia, inclusive
sobre a possibilidade de transfusão de sangue.
Toda cirurgia, independente da
complexidade, é passível de complicações. A perda maciça de sangue pode levar
ao choque hemorrágico que, em muitos casos, só é revertido com a transfusão sanguínea.
E como agem os Testemunhas de Jeová que
irão passar por procedimentos em que existe a possibilidade de transfusão?
Esses pacientes estão preparados
para isso. Aparecem no hospital com artigos científicos, a Bíblia e, geralmente,
com um advogado, caso precisem interferir juridicamente. Citam, além dos dogmas
da religião, o uso da eritropoetina humana como forma de prevenir uma
transfusão maciça transoperatória.
A eritropoetina humana recombinante é um hormônio produzido
naturalmente nos seres humanos, cuja função é, principalmente, regular a produção
de células vermelhas do sangue, as hemácias. No pré e no pós-operatório pode
ser uma alternativa à transfusão sanguínea, apresentando resultados
satisfatórios em determinados casos. Porém, em cirurgias em que ocorre um sangramento
abundante inesperado, a eritropoetina não é eficaz, já que sua ação começa apenas
de duas a seis semanas após a administração, tempo muito longo no caso de uma
emergência em situação de cirurgia.
Logo que me formei, fiz alguns
plantões em um hospital de trauma, onde soube de algumas situações delicadas
relacionadas ao tema. Me recordo de uma delas, muito impactante, mas que teve
um final feliz.
Era uma madrugada de inverno,
corrida e agitada. Chega na emergência, trazida pelo SIATE, uma vítima de
atropelamento, gravemente ferida e já entubada pelos socorristas no local do
acidente. No pronto socorro, foi constatado que a vítima teria que passar por
um procedimento cirúrgico de emergência.
Logo chegaram os familiares da
vítima, acompanhados de um pastor, um advogado e amigos. Mesmo sabendo do
estado grave do paciente disseram que ele era Testemunha de Jeová e que não
deveria receber sangue. Justificaram o pedido citando a eritropoetina e
excertos bíblicos.
O paciente precisava de sangue
urgentemente. O que fazer? O cirurgião chefe, com certeza, já tinha
lidado com situações parecidas. Com perspicácia e rapidez admiráveis, antes de
subir para a cirurgia, pegou a maca com o paciente e a levou para uma sala
reservada. Lá, fechou as cortinas e a porta, pediu silêncio geral para toda a
equipe e passou sangue ao paciente. Depois desse procedimento, foram para
a sala de cirurgia.
Com certeza, se não tivesse sido
feita a reposição de sangue, o paciente teria ido a óbito.
A cirurgia foi um sucesso. Os pais
agradeceram muito o médico por ter salvado seu filho e por ter cumprido a
decisão da família de não transfundir o sangue. O paciente se recuperou bem, o
segredo foi mantido, o cirurgião se livrou de uma causa na justiça, e todas as
pessoas ficaram preservadas, cada uma com a sua consciência. Se alguém será
punido por isso algum dia, só Deus ou, se preferirem, Jeová, é quem sabe.
-o-
Ângelo Roman Neto – Curitiba PR
· Graduação em Medicina (PUC PR - 2009).
· Residência em Anestesiologia (Hospital Cajuru).
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