Roberta Colvara
Torres Medeiros
Já
fazia alguns anos que eu atendia a Dona Maria*. Pessoa triste, sorria muito
pouco, muito preocupada com a família. Na sua história de vida, carregava uma
dor pungente, uma dor que a imobilizara há tempos, que a tornara dependente de vários
antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor, prescritos pelos
psiquiatras e mantidos por mim e por outros médicos que a acompanhavam. Consultava
diversas vezes em pouco tempo. Tinha fama de utilizar a Unidade de Saúde de
forma recorrente, mas que nunca estava contente. Ela causava suspiros na equipe
quando chegava, pois se sabia que teria uma série de queixas repetitivas...
Acontece
que todos os seus filhos eram portadores de uma malformação cardíaca, em que as
pessoas portadoras acabam falecendo com cerca de 20 anos. É uma doença
genética, que acabou acometendo todos os irmãos. A esse ponto, já tinha perdido
3 dos 7 filhos, sendo que dois deles morreram num mesmo final de semana. Outro
filho já apresentava alterações cardíacas e aguardava cirurgia, mas poderia
morrer a qualquer momento. Uma neta também era portadora.
A
Dona Maria se culpava demais pelos fatos. Nesse dia resolveu se abrir. Ela era
a última paciente da manhã e eu resolvi ficar com ela na hora do almoço. Achava
que as irmãs de Igreja tinham razão: Deus a estava castigando ao tirar seus filhos, pois já
fazia algum tempo que não conseguia ir ao culto ou mesmo pagar o dízimo por
conta das preocupações e dos gastos com os filhos. Na tentativa de lhe aliviar
o sofrimento, resolvi fazer um paralelo:
– Dona Maria, veja
bem, seus filhos já aprontaram, certo?
– Claro doutora...
Durante
as consultas mantinha-se sempre cabisbaixa...
– E quando eles
aprontavam você em algum momento deixou de amá-los?
– Jamais! Eles
sempre foram a razão da minha vida...
– Então: se nós que
somos imperfeitos não somos capazes de deixar de amar um filho, imagina que
Deus, sendo soberanamente justo e bom, faria isso?
Ela
levantou o rosto, ficou boquiaberta por algum tempo e finalmente vi um sorriso
naquele rosto sofrido:
– A senhora não
sabe o peso que me tirou das costas. Muito obrigada!
Após
essa conversa, percebi que algumas vezes precisamos lançar mão de outras
ferramentas para trazer um pouco de alívio a alguém. Afinal, a Medicina tem
limites. Não podemos apenas tratar o sofrimento das pessoas com remédios. Dona Maria
tinha dentro de si a resposta, mas havia perdido a confiança havia muitos anos.
Bastou um tempinho a mais para acharmos, dentro dela, uma fé que havia muito
estava recolhida.
Passado
um ano dessa conversa, eu já não atuava mais na equipe que atendia a Dona
Maria. Mas ela foi até a Unidade de Saúde em que trabalho me levando um rapaz
de uns 22 anos:
– Olha doutora, meu
filho conseguiu o marca-passo! É o primeiro que conseguimos salvar!!! Muito
obrigada, que Deus lhe abençoe!
Muito
Obrigada, Dona Maria. A senhora não sabe o bem que me fez em me ensinar uma
grande lição: a força e a fé nunca devem se apagar!
-o-
*Nome fictício.
Roberta Colvara Torres Medeiros
· Graduação em Medicina
pela Universidade
Federal de Pelotas (UFPEL) - 2001.
· Especialização em Saúde da Família
pelo método PROFAM, no Instituto InFamilia de Curitiba - 2008.
· Mestranda em Saúde e Meio Ambiente
pela UNIVILLE - 2017.
· Médica de Família e Comunidade, atua
em Joinville (SC).