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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 7 de abril de 2017

A FÉ ALÉM DOS REMÉDIOS!




Roberta Colvara Torres Medeiros

Já fazia alguns anos que eu atendia a Dona Maria*. Pessoa triste, sorria muito pouco, muito preocupada com a família. Na sua história de vida, carregava uma dor pungente, uma dor que a imobilizara há tempos, que a tornara dependente de vários antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor, prescritos pelos psiquiatras e mantidos por mim e por outros médicos que a acompanhavam. Consultava diversas vezes em pouco tempo. Tinha fama de utilizar a Unidade de Saúde de forma recorrente, mas que nunca estava contente. Ela causava suspiros na equipe quando chegava, pois se sabia que teria uma série de queixas repetitivas...
Acontece que todos os seus filhos eram portadores de uma malformação cardíaca, em que as pessoas portadoras acabam falecendo com cerca de 20 anos. É uma doença genética, que acabou acometendo todos os irmãos. A esse ponto, já tinha perdido 3 dos 7 filhos, sendo que dois deles morreram num mesmo final de semana. Outro filho já apresentava alterações cardíacas e aguardava cirurgia, mas poderia morrer a qualquer momento. Uma neta também era portadora.
         A Dona Maria se culpava demais pelos fatos. Nesse dia resolveu se abrir. Ela era a última paciente da manhã e eu resolvi ficar com ela na hora do almoço. Achava que as irmãs de Igreja tinham razão: Deus a estava  castigando ao tirar seus filhos, pois já fazia algum tempo que não conseguia ir ao culto ou mesmo pagar o dízimo por conta das preocupações e dos gastos com os filhos. Na tentativa de lhe aliviar o sofrimento, resolvi fazer um paralelo:
– Dona Maria, veja bem, seus filhos já aprontaram, certo?
– Claro doutora...
Durante as consultas mantinha-se sempre cabisbaixa...
– E quando eles aprontavam você em algum momento deixou de amá-los?
– Jamais! Eles sempre foram a razão da minha vida...
– Então: se nós que somos imperfeitos não somos capazes de deixar de amar um filho, imagina que Deus, sendo soberanamente justo e bom, faria isso?
Ela levantou o rosto, ficou boquiaberta por algum tempo e finalmente vi um sorriso naquele rosto sofrido:
– A senhora não sabe o peso que me tirou das costas. Muito obrigada!
Após essa conversa, percebi que algumas vezes precisamos lançar mão de outras ferramentas para trazer um pouco de alívio a alguém. Afinal, a Medicina tem limites. Não podemos apenas tratar o sofrimento das pessoas com remédios. Dona Maria tinha dentro de si a resposta, mas havia perdido a confiança havia muitos anos. Bastou um tempinho a mais para acharmos, dentro dela, uma fé que havia muito estava recolhida.
Passado um ano dessa conversa, eu já não atuava mais na equipe que atendia a Dona Maria. Mas ela foi até a Unidade de Saúde em que trabalho me levando um rapaz de uns 22 anos:
– Olha doutora, meu filho conseguiu o marca-passo! É o primeiro que conseguimos salvar!!! Muito obrigada, que Deus lhe abençoe!
Muito Obrigada, Dona Maria. A senhora não sabe o bem que me fez em me ensinar uma grande lição: a força e a fé nunca devem se apagar!
-o-
*Nome fictício.

Roberta Colvara Torres Medeiros
·      Graduação em Medicina pela Universidade Federal de Pelotas (UFPEL) - 2001.
·      Especialização em Saúde da Família pelo método PROFAM, no Instituto InFamilia de Curitiba - 2008.
·      Mestranda em Saúde e Meio Ambiente pela UNIVILLE - 2017.
·      Médica de Família e Comunidade, atua em Joinville (SC).