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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 10 de março de 2017

MORTE ANTECIPADA



Carlos Alberto de Assis Viegas

É segunda-feira de manhã. Na entrada do hospital, confusão de pessoas. No terceiro andar, fica a enfermaria, onde pessoas com doenças respiratórias estão internadas. O corredor está tumultuado. No último quarto, está internado Antônio, um lavrador de 60 anos. Ele está com câncer de pulmão, que já se estendeu para o fígado e ossos. Bato à porta e cumprimento Antônio, que aperta minha mão. Ele me diz que está feliz com a visita dos familiares queridos durante o final de semana. Hoje, ele tem um outro brilho no olhar, apesar de sua extrema palidez e falta de ar. De súbito, sua mulher me pergunta por mais quanto tempo ele ficará internado. Sem responder, olho pela janela.
cruza o céu azul
um voo de maritacas -
meus olhos molhados

Depois do episódio descrito no haibun* acima, Dona Lurdes, esposa do    Antônio, veio até minha sala para conversarmos. Após eu confirmar a gravidade do caso, ela me relatou como tudo teve início. Eles moram na zona rural e o atendimento médico mais próximo fica a 4 quilômetros, na periferia de uma cidade satélite do Distrito Federal. Foi há mais de dez meses que Antônio, enquanto trabalhava na roça de milho numa tarde de muito calor, tomou aquela chuva pesada que o fez retornar mais cedo para casa. Ele então começou a sentir febre alta e tosse com expectoração amarela. Depois de duas tentativas, conseguiram um atendimento no posto médico, onde lhe foi diagnosticado clinicamente pneumonia e prescrito antibióticos durante dez dias. Em meados de junho, o quadro respiratório retornou com tosse e agora com sangue no escarro. 

Dona Lurdes tentou inutilmente conseguir nova consulta durante quinze dias. Quando a condição física dele se agravou, resolveram dormir no posto de saúde para serem atendidos.  Novamente diagnóstico clínico de pneumonia, mais antibiótico, que desta vez não resolveu o quadro. Retornaram duas semanas depois e finalmente fizeram radiograma do tórax, que revelou lesão suspeita. Foram então encaminhados para o hospital da regional mais próxima. Ela tentou durante 45 dias agendar uma consulta no ambulatório e, quando conseguiu, foi marcada para seis meses adiante. No começo da primavera, Antônio teve o quadro agravado e foi levado por vizinhos até o hospital, onde foi atendido e internado no pronto socorro. Lá permaneceu durante 11 dias aguardando vaga na enfermaria, que foi onde o visitei, já no décimo sétimo dia de internação.

O sistema público de saúde no Brasil é uma conquista social que deve ser defendida,  preservada e precisa ser melhorada continuamente. Mesmo com deficiências, continua sendo um serviço muito importante para a população, especialmente para aquela grande maioria que não dispõe de acesso à medicina privada. Este relato é para chamar a atenção sobre os problemas que nós médicos da saúde pública e principalmente 2/3 da população brasileira passamos com os atendimentos nos hospitais públicos brasileiros.

Fico a me perguntar como equilibrar nossas emoções com as demandas dos pacientes e familiares em um ambiente onde o profissional da saúde se vê impossibilitado de oferecer atendimento correto a seu paciente. Também nos sentimos frustrados por estarmos pressionados a tomar decisões em ambientes desfavoráveis, geralmente com superlotação e falta de recursos. 

Viver essa situação durante anos pode nos levar a esgotamento profissional com perda do entusiasmo, distanciamento emocional de nossos pacientes e familiares, diminuição do sentimento de realização profissional e da compaixão, que devem ser nossa principal motivação. Nessas condições, podemos indiretamente interferir negativamente no sistema de saúde e diretamente na qualidade do atendimento e nos desfechos dos pacientes.

Este é um momento importante para nossa reflexão de como compreender melhor nossos limites e de nossas instituições, para que assim possamos exercer nosso ofício sempre em benefício do outro, evitando mortes antecipadas.
-o-

Carlos Alberto de Assis Viegas
Graduação em Medicina pela UnB. 
Mestrado em Pneumologia pela UFRGS.
Doutorado em Fisiopatologia Respiratória pela Universitat de Barcelona.
Pós-doutorado pela University of Pennsylvania. 
Professor Associado da UnB.
Seguidor do Shin Budismo e aprendiz de haijin (haicai).




*Haibun é um gênero literário de origem japonesa que consiste de um texto curto em prosa, que geralmente se refere a uma experiência vivida pelo autor, seguido de um haicai.