Anderson Roman
A base do cuidado médico é a relação
médico-paciente. E essa relação está pautada na confiança que nós depositamos
naquele profissional que procuramos quando sentimos que temos algum problema de
saúde. Afinal, ele vai colocar as mãos em nós, nos dar conselhos, sugestões,
recomendações, prescrever medicações, sugerir condutas, indicar uma operação,
etc. Enfim, para ouvir de um médico coisas que não gostaríamos de ouvir, por
serem desagradáveis, ainda que necessárias e verdadeiras, é preciso confiar. Será
assim para todos?
Quando eu estava na Faculdade de Medicina,
imaginava como seria minha vida profissional como médico e pensava em como
seria bom ter o reconhecimento das pessoas que eu atenderia. Creio que essa é
uma importante motivação para os médicos e é o que nos leva a buscar desenvolvimento
constante e não parar de estudar, ler, reler, debater, pesquisar, produzir artigos... tudo isso para
aprimorarmos nossa competência e
construir uma relação de confiança com nossos pacientes e merecer o seu
reconhecimento.
Faço consultório há mais de 20 anos e ainda
me surpreendo quando vejo que nem todos os pacientes valorizam essa relação de
confiança que eu e muitos médicos prezamos tanto e tampouco se preocupam em
reconhecer o bom atendimento que recebem.
Inúmeras vezes pergunto a pacientes sobre
seu histórico de atendimento e quais médicos os atenderam. Isso tem alguma
relevância, por exemplo, para termos uma ideia da técnica cirúrgica adotada.
Não é incomum ouvir a resposta: “não lembro o nome do médico que me operou”.
Imagine uma pessoa que teve, por exemplo,
seu estômago operado por um médico que o assistiu antes da cirurgia, que
discutiu com ele os exames, indicou e explicou os riscos, os benefícios, as
chances, bem como o viu por algum tempo após a cirurgia, para ver os
resultados, se tudo correu bem e, após tudo isso, não se lembrar do nome. Será
que é possível confiar em alguém de quem você sequer sabe o nome?
Confesso que é difícil aceitar que alguém possa
ter esquecido o nome de quem o viu por dentro, que mexeu nas suas vísceras com
sua autorização. Em geral, a complementação da resposta é mais triste ainda:
“mas lembro que atendia pelo convênio ...”.
“Convênio” em geral se refere ao plano de
saúde ou seguro saúde que o usuário/paciente tem e utiliza para pagar suas
despesas médicas. Mudar de convênio, por força do empregador, por exemplo, é
rotineiro. Por conta dessa mudança, os pacientes deixam de ter o acesso a seus
médicos tradicionais quando estes não atendem pelo novo convênio. Se quisessem
continuar com o mesmo médico teriam que optar pelo pagamento particular. A
maior parte, porém, não pode arcar com o custo do atendimento médico sem o
convênio.
Assim, a troca de médico se torna rotina e a identificação com aquele profissional e a relação médico-paciente construída ao longo do tempo se perdem. Os convênios listam os médicos que atendem pelo seu plano de saúde, em geral, em ordem alfabética, divididos por especialidades. Recebi muitos pacientes que me procuraram por eu ser o primeiro da lista do convênio (letra “A”) – hoje já sou o segundo da lista...
A lógica perversa desse sistema é que o convênio
assume o papel de cuidador no imaginário dos usuários. Esse é um limite da
profissão para o qual não estava preparado e ainda estranho.
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