Renata Almeida
Trabalho como homeopata há mais de 25 anos. Escuto histórias de dor e
sofrimento desde antes de compreender o quanto a escuta é fundamental em nosso
trabalho. Essa compreensão se aprofundou com a chegada da Psicanálise em minha
vida.
Os ditos e os
não ditos de um paciente, ou de seus familiares, são essenciais a quem exerce a
Medicina. Pérolas podem ser reveladas numa brincadeira ou mesmo num silêncio
constrangedor. Algumas especialidades permitem ao médico acompanhar a vida de
seus pacientes, com suas pequenas e grandes dificuldades, e ouvir seus
testemunhos de vida. Pediatras, clínicos gerais, ginecologistas e homeopatas
enquadram-se bem nisto que quero desenvolver.
A relação
construída ao longo do tempo entre médico e paciente possibilita que ocorra um processo
de transferência em que, além das queixas físicas, vêm também os sofrimentos da
alma. Escutamos sobre casamentos em crise, crianças e seus transtornos
escolares, abusos passados e atuais. Muitas vezes nosso consultório é o único
espaço onde uma pessoa é capaz de falar sobre si mesma. Somos transformados,
por obra dessa transferência, em psicoterapeutas além de médicos.
Na faculdade,
estudamos o corpo humano em suas mais delicadas relações moleculares, mas pouco
nos debruçamos sobre os efeitos de estarmos nessa posição de escuta da história
de pessoas. Pouco falamos ou pesquisamos sobre o peso e os efeitos desse laço
transferencial estabelecido com nossos pacientes. São inúmeros os colegas que
migram de especialidade quando se deparam com as dores e angústias do dia a dia
da clínica.
Lembro de um
radiologista que passou pela pediatria, segundo ele, “a jato”, pois tinha sido
insuportável para ele sustentar o vínculo com pais angustiados e ansiosos. Esse
colega nos contava estar mais confortável no trabalho com imagens e
diagnósticos.
O que fazemos
quando escutamos algo que excede nossa capacidade de atuação? Ou quando um
dito, um diagnóstico ou mesmo uma dúvida não sai de nossa cabeça ao final do
dia? O que fazemos quando nossa especialidade nem de perto dá conta do
relatado? Como reagimos ao desnudamento de outro ser humano nas suas mais feias
mazelas?
Nossa profissão é marcada pelo stress. Vida e morte. Ausência de leitos. Diagnósticos e prognósticos sombrios. Mesmo que a profissão nos ofereça muitas situações gratificantes, os momentos em que a dor é a tônica seguem nos acompanhando. Essa vivência muda nosso humor, nossa capacidade de escutar o outro, interfere em nosso sono, rouba nossa qualidade de vida.
Nossa profissão é marcada pelo stress. Vida e morte. Ausência de leitos. Diagnósticos e prognósticos sombrios. Mesmo que a profissão nos ofereça muitas situações gratificantes, os momentos em que a dor é a tônica seguem nos acompanhando. Essa vivência muda nosso humor, nossa capacidade de escutar o outro, interfere em nosso sono, rouba nossa qualidade de vida.
A Medicina
carrega os limites da Ciência e nós, médicos, carregamos em nós os limites da
nossa humanidade. Tocamos esses limites diuturnamente: sofremos e nos irritamos
com aquilo que gostamos de fazer!
Como
elaboramos isso em nossas vidas? Buscamos um espaço de terapia? Falamos sobre
os nossos limites com alguém? Permitimos que esse desconforto circule entre nós
e nossos parceiros? Reconhecemos que é necessário ter tempo para escutar uma
queixa e refletir sobre ela ou viramos peças de uma engrenagem que funciona num
ritmo desumano? Ou, pior, negamos que haja excessos em nosso ofício? Muito do
glamour de nossa profissão vem da necessidade de encobrir esse dia a dia tão
exigente e tão sofrido, apesar de muitas vezes ser, realmente, um lindo ofício.
A Ciência, há
muito, já trabalha com a concepção de que o observador altera os resultados de
uma experiência. Então, a nossa própria dor e sofrimento, sejam elas quais
forem, alteram os resultados de nossos tratamentos.
Há limites
para a Medicina. Há limites para todos.
Nosso colega
radiologista, aqui lembrado, reconheceu seus limites e procurou uma área da
Medicina que o mantém relativamente distante do que lhe causava stress e
desconforto. Essa nem sempre é uma solução viável e desejável para todos. Que
tal, então, além de reconhecer nossos limites, assumir o importante papel de
cuidar das dores do corpo e da alma e continuar a busca por um atendimento mais
humanizado para nossos pacientes e também para nós mesmos?
-o-
Renata
Almeida
●
Formada em Medicina pela UFPR (1988).
●
Especialista em Homeopatia pela Associação
Médica Homeopática Brasileira.
●
Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica
de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA.
●
Coordenadora do Projeto Casa dos Cata-Ventos em
Porto Alegre.
Muito lindo
ResponderExcluirMuito bom!! Mas vale principalmente (não sei porque omitiu-se isso do texto) e especialmente para os médicos de família e comunidade e médica da atenção primária em geral.
ResponderExcluirMuito bom o texto. Senti falta da citação da especialidade médica medicina de família e comunidade, apenas.
ExcluirRESPOSTA DA RENATA ALMEIDA (AUTORA DO ARTIGO)
ResponderExcluirPrezada Camile, Prezado Charles
Vocês estão cobertos de razão. Quem faz Medicina de Família e Comunidade está sob os efeitos da transferência com seus pacientes e também com o território. E aqui, transferência com o território vale um outro artigo de tão complexo é esse assunto.
Obrigada pela lembrança!
Renata Almeida