A CIÊNCIA COMO ARMA
Anderson Roman
“Nunca antes na história deste País” as trevas medievais foram tão exaltadas e estiveram tão associadas com o caos e a morte como agora. Período estranho, triste, doloroso. A pandemia se alastra, mortes e mortes se acumulam.
Primeiro se vão desconhecidos, invisíveis, distantes. Logo, porém, ficamos sabendo de conhecidos que foram atingidos. Dali a pouco alguns vizinhos. Depois, companheiros de trabalho. Quando perdemos um ente querido, aí sim a sensibilidade, antes ofuscada, aflora.
Enquanto isso, os que se suporiam líderes se entregam a um caminho completamente dissociado da realidade, da necessidade, daquilo para que foram escolhidos. Visam o próprio umbigo e de seus cúmplices. Propõem armas. Sim, armas de fogo. Como se um tiro pudesse matar um vírus RNA. Não! Tiro mata, na grande maioria das vezes, jovens pobres e negros. Não são eles os vírus. Tampouco são eles nosso mal. Nosso mal é de cerne. Somos madeira bichada, com cupins. E, para esse mal, o nosso verniz, o mata-cupim é a ciência.
Devemos armar-nos de ciência. Usá-la como arma contra as trevas, o fascismo, a intolerância, a ignorância. Pois é de ignorância que, principalmente, a ciência trata. E o faz construindo certezas. Certezas volúveis, pois se sabe que a ciência nunca a terá de forma absoluta e definitiva. Na ciência há sempre um s.m.j., salvo melhor juízo.
O que hoje sabemos é resultado da aplicação de um método, uma forma, um teste, um experimento, que levou a uma conclusão, a uma certeza provisória. O método adotado deve ser claro, límpido e reproduzível, pois, se eu consegui demonstrar, você também deve ser capaz.
Até o século XVIII, acreditava-se na chamada “geração espontânea” de larvas a partir de matéria orgânica em decomposição. Com o aprimoramento dos métodos de observação, verificou-se que as larvas eclodiam de ovos postos por moscas. Não se tratava de um ato divino que determinava o aparecimento de vida no material deteriorado. Era uma etapa do ciclo de vidas dos insetos que tanto nos desagradam.
E é de método de observação que precisamos entender, de forma simples e direta, para, ao menos inicialmente, afastarmos as trevas da pseudociência, como aquela que afirma que um tratamento funciona em todos porque em um havia funcionado.
É preciso entender o que é acaso e futilidade, senão acabaremos achando que um copo de água com açúcar é a solução para as crises de pânico. E não perceberemos que é o gesto, o acolhimento daquele que leva o copo e dá o calor da atenção que atenua a crise, não o açúcar, nem a água.
Assim está o debate das cloroquinas e seu uso na pandemia. A conclusão sobre a eficácia desse medicamento no tratamento da COVID19 se baseou em uma observação do mesmo padrão metodológico daquela que concluiu que a matéria orgânica putrefata gerava espontaneamente moscas.
Já saímos da idade das trevas! Temos hoje métodos melhores que chegam a conclusões depois de muitas observações controladas cientificamente. E os estudos científicos, com metodologias confiáveis e observações sistematizadas, falam contra o uso das cloroquinas no combate ao Corona, pois elas trazem malefícios.
O debate, porém, está tão obscurecido pelas paixões amplificadas pela ignorância, que não se propõe uma saída sensata e sustentada cientificamente, que seria um estudo clínico randomizado duplo cego. E a tragédia aflige hoje bons pesquisadores brasileiros, submetidos a pressões injustificadas, algumas delas vindas do Judiciário, leigo e movido pelo ânimo punitivo, quando deveria estar preocupado em criar condições para que o espírito científico se sobreponha à ignorância. Acabam predominando opiniões como aquelas que acreditavam na geração espontânea de moscas na matéria podre, dificultando o estudo honesto com métodos adequados pela ciência brasileira.
Esse cenário obscuro nos convida a refletir sobre nossas escolhas, nossos atos, nossa opinião e também nosso voto nas eleições. Essas escolhas têm reflexos importantes na vida de todos nós e diretamente na saúde pública e na morte daquele amigo que nos deixou sem podermos nos despedir.
A Medicina tem limites. A ciência tem limites. Esses limites, porém, podem ser administrados e superados quando os responsáveis pela condução do país possuem discernimento, esclarecimento e sensibilidade política e social. Para esse flagelo, infelizmente, não temos ainda perspectivas de superação.
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