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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 22 de abril de 2016

ECO DISSONANTE



Marcus Vinicius

"A prática da medicina é uma arte, não um comércio; uma vocação, não um negócio; uma vocação através da qual teu coração será exercitado assim como teu cérebro."
Sir William Osler


Outro dia, atendi um jovem de 19 anos que veio à consulta acompanhado da mãe. Ele era portador de uma cardiopatia congênita e tinha sido submetido a correção cirúrgica havia pouco mais de um ano. A cirurgia foi bem sucedida e o garoto estava evoluindo bem, sem nenhuma complicação.

Como de costume, após avaliação clínica, expliquei tudo para eles e pedi que voltassem em seis meses. Foi então que a mãe, com um semblante de insatisfação, logo interrogou:

- Mas o senhor não vai pedir nenhum exame? Não vai pedir um Ecocardiograma?
- Não, senhora. Não houve mudança no quadro clínico (dados coletados e exame físico do paciente ), portanto, não vejo necessidade - respondi.
- Mas o cardiologista que acompanhava ele antes da cirurgia disse que esse exame deveria ser feito a cada 6 meses! – insistiu a senhora.
- Isso não é receita de bolo. Nas consultas de rotina, será avaliada a necessidade de repetir o exame. - expliquei.
- Então vou procurar o outro médico dele e não quero mais consultar aqui! - retrucou a mãe do rapaz.

Trouxe esse caso para discutir sobre a relação médico-paciente-exames.  A relação deveria ser apenas do médico com o paciente, quando o médico entra na intimidade do doente, estabelecendo um vínculo de confiança que é fundamental para o entendimento da doença, proporcionando um tratamento adequado.

Os planos de saúde têm um modelo de remuneração que paga um valor maior para exames complementares do que para consultas. Uma nova consulta, realizada dentro de 30 dias, chamada de retorno, não é paga pelo convênio. Essa situação acaba estimulando, especialmente os donos de equipamentos (médicos e empresários), a pedirem exames sem indicação formal, não seguindo as orientações das sociedades médicas. Além disso, as grandes empresas que fabricam os equipamentos trabalham com um marketing agressivo. Pagam reportagens em programas de televisão para divulgar determinado equipamento, afirmando que o novo exame oferecido é fundamental para saber se você tem alguma doença.

Imaginem a confusão que fica na cabeça do paciente, pois não existe uma uniformidade nas condutas. A tendência é ele achar que o profissional que não pede exames está sendo negligente, pois não teria condição de fazer uma boa avaliação sem o exame complementar.

Não quero desprezar o importante papel da tecnologia na Medicina. O Ecocardiograma trouxe um avanço significativo, tanto no diagnóstico quanto no tratamento dos diversos tipos de cardiopatias, mas não substitui um estetoscópio e ouvidos bem treinados. A maior parte das doenças cardiovasculares foram descritas de forma minuciosa antes do advento da  ecocardiografia.  Técnicas cirúrgicas sofisticadas foram criadas, cirurgias cardíacas foram  realizadas com sucesso sem auxílio do ecocardiograma.

Essa  ferramenta tecnológica deve ser utilizada com racionalidade pois os recursos para saúde são limitados. Observamos  o grande números de pacientes nas filas do SUS esperando por exames complementares. Se nós, médicos, seguíssemos as orientações das diretrizes científicas, será que as filas não seriam menores? Também, reclamamos do baixo valor pago pelos planos de saúde, mas estamos pedindo cada vez mais exames desnecessários, tornando inviável uma melhor remuneração da consulta.

O que podemos fazer para mudar este cenário é estabelecer um vínculo de confiança com nossos pacientes, mostrar que os exames complementares apenas auxiliam no diagnóstico e quem deve ter o protagonismo de saber se devem ser solicitados é o médico. Quanto a nós, profissionais, cabe bom senso e muito estudo. Afinal, nós também somos vítimas desse fetiche que as pessoas criaram em relação aos exames.

-o-





sábado, 2 de abril de 2016

MEDICINA E COMPAIXÃO


Carlos Alberto de Assis Viegas
Dia das crianças
Com os olhos marejados
A mãe guarda a foto
Um dos mais importantes objetivos da Medicina é aliviar ou, quando possível, terminar com o sofrimento dos pacientes, seja esse sofrimento decorrente de condições físicas, psíquicas ou mesmo sociais. Na busca desse objetivo, graças à evolução técnica da prática médica, poderemos, a médio prazo, chegar à possibilidade de usarmos um aparelho no pulso, como um relógio, que detectará alterações importantes dos níveis de glicose no sangue, da pressão arterial, por exemplo, ou poderemos também colocar profilaticamente um marca-passo cardíaco ou um desfibrilador. Nessa situação, registrado um problema pelas máquinas, poderíamos entrar em contato com um centro médico virtual que nos orientaria o que fazer.
Entendo que, ainda que tudo seja controlado de forma técnica, os pacientes necessitarão de algum contato físico com um profissional da saúde. Sempre haverá algo no paciente, não relacionado com a máquina física do organismo, que poderá continuar provocando sofrimento. Digo isso porque acredito que a sensação de bem-estar, ou a ausência de sofrimento, passa necessariamente por um equilíbrio entre corpo, mente e espírito. Se, na atualidade, ainda sem essas maravilhas tecnológicas, já nos queixamos de muitos médicos que não fazem um contato adequado com a maioria dos seus pacientes, podemos imaginar o que poderá vir a ser uma relação médico-paciente numa situação com alto desenvolvimento tecnológico.
O Budismo tem como um de seus mais importantes pilares a noção de que a vida é sofrimento e que esse sofrimento decorre da ignorância ou não compreensão da impermanência, da interdependência e da fragilidade do eu. É importante compreendermos a natureza transitória de tudo que existe e, especialmente, aceitarmos que, assim como as estações do ano cumprem um ciclo contínuo de morte e renovação, nós, seres humanos, nascemos, crescemos, envelhecemos e morremos.
Também é preciso lembrar a nossa natureza interdependente. Somos parte de uma totalidade e estamos aqui porque existiram causas, condições e efeitos para surgirmos nesta existência. Necessitamos de cooperação e interação, pois dependemos uns dos outros para nossa sobrevivência, como de abrigo, comida, recursos, etc. A fragilidade do eu, por sua vez, é decorrente da falta de autoconhecimento, pois temos um eu ilusório, forjado pela família, sociedade e cultura, que nos impede de nos reconhecermos como realmente somos e de ver a vida como ela verdadeiramente é.
Voltando aos médicos que têm um relacionamento apenas técnico com os pacientes, penso que talvez lhes falte um pouco de espiritualidade, entendida como a percepção de que existe algo que transcende o material/físico. Talvez lhes falte capacidade de sentir os próprios sentimentos ou a percepção de que existe uma ligação necessária entre a parte física e a mental e que o coração e a mente são interdependentes. Talvez falte ainda a esses profissionais saber que a espiritualidade pode ser potencializada pelo autoconhecimento.
Quem sabe, a partir daí, esses médicos teriam a compreensão de que todos os seres têm direito à felicidade. Quem sabe então poderiam exercitar a compaixão, entendida como a atitude de ouvir o outro, sensibilizar-se com sua dor e criar condições para retirá-lo da situação de sofrimento.
Parece-nos, finalmente, que é fundamental para quem se propõe a cuidar do outro, além do entendimento da impermanência e transitoriedade de tudo, ter consciência dos limites humanos em relação à morte, o que significa aceitar que a principal missão do médico não é pretender a vitória sobre a morte, mas sim buscar alívio para o sofrimento do paciente.
Paro outra vez
Frente ao jardim de camélias –
Saudades da avó
-o-
Carlos Alberto de Assis Viegas
·      Graduação em Medicina pela UnB.
·      Mestrado em Pneumologia pela UFRGS.
·      Doutorado em Fisiopatologia Respiratória pela Universitat de Barcelona.
·      Pós-doutorado pela University of Pennsylvania.
·      Professor Associado da UnB.

·      Seguidor do Shin Budismo e aprendiz de haijin (haicai).