Angelmar Constantino Roman
Me diz uma paciente, que recebo em meu consultório:
“Minha vó não mudou muito o
jeitinho de esquecida dela. Mas percebo que ela está bem. E estou concluindo
que ela é que está certa! Eu tenho estado muito agitada nos últimos anos, por
conta da separação, trabalho, família... Um dia desses me perguntei: será que
tudo está agitado mesmo ou são meus olhos e ouvidos que percebem um carnaval
desorganizado nesse mundo? Eu posso até levantar chumbadona com aqueles
comprimidos que você não quer que eu tome pra dormir. Mas, já saindo na rua, o
mundo todo me chacoalha sonora e rapidamente. Estou antenada! Sei de tudo,
acompanho as notícias. E dou conta dos requisitos sociais todos. Estou pronta
e conectada. Mas isso me tira a paz. Não consigo enxergar nada além do
palpável, do material. Essa cafeína constante está me esgotando...”
E assim essa executiva, com uma história de enfrentamentos e vitórias,
vai descrevendo o que já ouvi algumas vezes nesses anos em que a acompanho como
médico. Aliás, fui uma das poucas coisas que não mudou em sua vida, como sói
acontecer com os Médicos de Família. Após a separação, afundou-se no trabalho e
teve uma ascensão profissional vertiginosa tornando-se muito mais agitada do
que sempre fora. Essa valente mulher decidiu então que sua avó materna, que
agora mostra-se com demência senil avançada, não estava tão mal assim. Segui ouvindo:
“Ontem eu estava bufando de
raiva, tive que demitir dois na empresa. Isso me acaba! Tomei o Rivotril, mesmo
sabendo que minha memória vai pifando com isso. E foi pensando nessa história
de perda da memória que entrei em casa, doida pra sossegar num canto. Minha avó
estava sentada, com seu costumeiro olhar pro nada, me mirando com um sorriso clichê que ela
adota, já que não reconhece nem as pessoas, nem onde está. Quando lhe segurei
as mãos, ela, como sempre, semissorriu. Mas desta vez olhei no fundo dos olhos
dela e vi que ali estava exatamente o inverso do agito louco do mundo lá fora.
Minha vozinha tinha nos olhos a placidez que eu estava precisando...”
A demência senil, comumente
nominada de Alzheimer, está cada vez mais presente em nosso cotidiano. O aumento da longevidade povoou
as casas com idosos, modificando a paisagem das famílias, das lojas, dos
restaurantes e, claro, das unidades de saúde. As doenças infectocontagiosas
foram dando lugar, nos últimos anos, às crônico-degenerativas.
Os laboratórios estão eufóricos com esse novo nicho de mercado, pois são
26 milhões os maiores de 60 anos no Brasil. Segundo dados das sociedades
médicas especializadas, porém, os fármacos oferecem apenas melhoras modestas ou
nulas. Isso, com pacientes em instituições para idosos. Nos velhinhos que estão
em casa com seus familiares ou cuidadores, os medicamentos disponíveis têm
efeitos ainda mais pífios. Não
existe, portanto, milagre farmacológico que dê conta dos problemas apresentados
por nossos idosos. Eles precisam de muito cuidado, compreensão e paciência. E
menos intervenção médica.
Nossa arrogância médica não suporta essa impotência terapêutica. Mesmo
assim, tento reinterpretar essa vivência interior dos idosos, ainda
desconhecida para nós, como fez a minha agitada paciente: será que essas
criaturas, com seus olhares-pro-nada nos mirando, seus semissorrisos de paz,
suas marchas em slow-motion, não estão
resistindo bravamente aos nossos eternos-descontentamentos-de-tudo? Será que
não deveríamos parar um pouco pra tentar perceber que música elas ouvem lá
dentro da imensidão de lembranças esquecidas?
A paciente mercurial, vencedora da vida comum, com os olhos mareados, terminou
nosso encontro falando:
“Eu
vi nos olhos de minha avó, em sua demência esperta, que ela parecia ter
escolhido ignorar essa bagunça insana da qual sou operadora ativa e vítima. Minha
avó tinha olhos pra outras profundidades, pois mirava nos meus, como que
querendo buscar um mínimo fiozinho de paz eventual dentro de mim. Vim aqui
porque quero que me ajude a achar essa paz que ela agora tem...”
-o-