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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 11 de março de 2016

DAS CONTRIBUIÇÕES DO ALZHEIMER PARA O BEM-ESTAR DE NOSSA CIVILIZAÇÃO


Angelmar Constantino Roman
Me diz uma paciente, que recebo em meu consultório:
“Minha vó não mudou muito o jeitinho de esquecida dela. Mas percebo que ela está bem. E estou concluindo que ela é que está certa! Eu tenho estado muito agitada nos últimos anos, por conta da separação, trabalho, família... Um dia desses me perguntei: será que tudo está agitado mesmo ou são meus olhos e ouvidos que percebem um carnaval desorganizado nesse mundo? Eu posso até levantar chumbadona com aqueles comprimidos que você não quer que eu tome pra dormir. Mas, já saindo na rua, o mundo todo me chacoalha sonora e rapidamente. Estou antenada! Sei de tudo, acompanho as notícias. E dou conta dos requisitos sociais todos. Estou pronta  e conectada. Mas isso me tira a paz. Não consigo enxergar nada além do palpável, do material. Essa cafeína constante está me esgotando...”
E assim essa executiva, com uma história de enfrentamentos e vitórias, vai descrevendo o que já ouvi algumas vezes nesses anos em que a acompanho como médico. Aliás, fui uma das poucas coisas que não mudou em sua vida, como sói acontecer com os Médicos de Família. Após a separação, afundou-se no trabalho e teve uma ascensão profissional vertiginosa tornando-se muito mais agitada do que sempre fora. Essa valente mulher decidiu então que sua avó materna, que agora mostra-se com demência senil avançada, não estava tão mal assim. Segui ouvindo:
“Ontem eu estava bufando de raiva, tive que demitir dois na empresa. Isso me acaba! Tomei o Rivotril, mesmo sabendo que minha memória vai pifando com isso. E foi pensando nessa história de perda da memória que entrei em casa, doida pra sossegar num canto. Minha avó estava sentada, com seu costumeiro olhar pro nada,  me mirando com um sorriso clichê que ela adota, já que não reconhece nem as pessoas, nem onde está. Quando lhe segurei as mãos, ela, como sempre, semissorriu. Mas desta vez olhei no fundo dos olhos dela e vi que ali estava exatamente o inverso do agito louco do mundo lá fora. Minha vozinha tinha nos olhos a placidez que eu estava precisando...”
A demência senil, comumente nominada de Alzheimer, está cada vez mais presente em nosso cotidiano. O aumento da longevidade povoou as casas com idosos, modificando a paisagem das famílias, das lojas, dos restaurantes e, claro, das unidades de saúde. As doenças infectocontagiosas foram dando lugar, nos últimos anos, às crônico-degenerativas.
Os laboratórios estão eufóricos com esse novo nicho de mercado, pois são 26 milhões os maiores de 60 anos no Brasil. Segundo dados das sociedades médicas especializadas, porém, os fármacos oferecem apenas melhoras modestas ou nulas. Isso, com pacientes em instituições para idosos. Nos velhinhos que estão em casa com seus familiares ou cuidadores, os medicamentos disponíveis têm efeitos ainda mais pífios. Não existe, portanto, milagre farmacológico que dê conta dos problemas apresentados por nossos idosos. Eles precisam de muito cuidado, compreensão e paciência. E menos intervenção médica.
Nossa arrogância médica não suporta essa impotência terapêutica. Mesmo assim, tento reinterpretar essa vivência interior dos idosos, ainda desconhecida para nós, como fez a minha agitada paciente: será que essas criaturas, com seus olhares-pro-nada nos mirando, seus semissorrisos de paz, suas marchas em slow-motion, não estão resistindo bravamente aos nossos eternos-descontentamentos-de-tudo? Será que não deveríamos parar um pouco pra tentar perceber que música elas ouvem lá dentro da imensidão de lembranças esquecidas?
A paciente mercurial, vencedora da vida comum, com os olhos mareados, terminou nosso encontro falando:
“Eu vi nos olhos de minha avó, em sua demência esperta, que ela parecia ter escolhido ignorar essa bagunça insana da qual sou operadora ativa e vítima. Minha avó tinha olhos pra outras profundidades, pois mirava nos meus, como que querendo buscar um mínimo fiozinho de paz eventual dentro de mim. Vim aqui porque quero que me ajude a achar essa paz que ela agora tem...”
-o-