É pouco frequente
alguém que procurou um médico dizer que se sentiu cuidado, que recebeu um atendimento
satisfatório.
Não é estranho que
médicos, profissionais que lidam com a dor e o sofrimento, sejam percebidos
como insensíveis ou indiferentes? Esse fenômeno é tão relevante que hoje se
fala em um “mal-estar na forma de dar a assistência médica.” O objetivo deste artigo é refletir sobre essa complexa
questão, sob a perspectiva da formação médica.
A Medicina, a
partir do século XVIII, passou a se apoiar na Ciência de base Iluminista, especialmente com os estudos de Morgagni (Itália)
e Bichat (França). A partir de então, as doenças passaram a ser estudadas e
tratadas como a manifestação de um problema existente em algum órgão, tecido ou célula do corpo.
Essa metodologia de buscar, no mais profundo microscópico do corpo, a causa última das doenças se desenvolveu, formando uma base teórica que, aos poucos, empurrou pra fora das escolas médicas as visões sobre saúde e doença que não estivessem de acordo com os critérios do cientificismo iluminista da Modernidade.
Essa metodologia de buscar, no mais profundo microscópico do corpo, a causa última das doenças se desenvolveu, formando uma base teórica que, aos poucos, empurrou pra fora das escolas médicas as visões sobre saúde e doença que não estivessem de acordo com os critérios do cientificismo iluminista da Modernidade.
É conhecido o
relatório de um professor americano (Flexner) sobre as escolas médicas americanas e canadenses em 1910: metade delas pararam de receber subsídios das grandes
fundações por não se pautarem pelos conceitos da Ciência e, com isso, tiveram
que fechar suas portas.
Mas, afinal, o que
mudou com a chamada Ciência da Modernidade ou Ciência Iluminista? Destaco algo
fundamental: o pesquisador se distanciou do objeto de pesquisa, para melhor
observá-lo. E, para melhor entender esse objeto, dividiu-o em suas partes
constituintes.
Essa visão
metodológica trouxe avanços para a civilização, especialmente em relação ao
desenvolvimento tecnológico. Mas trouxe também algumas contradições, como o
mal-estar citado no início do texto. Na
Ciência Médica, o corpo humano não apenas passou a ser um objeto para estudo,
mas foi fragmentado para permitir o seu estudo sistematizado. Com isso, houve
um avanço magnífico no conhecimento do organismo humano e de suas patologias,
mas o dono desse corpo foi ficando esquecido e também o contexto em que ele
vivia. Estava preparado, assim, o caminho para a desumanização da prática
médica.
É por isso que se quer humanizar a Medicina: para que a pessoa sob cuidado se livre do papel de objeto e volte a ser considerado como alguém que está mergulhado em um contexto cheio de significados. Alguém que tem uma história, que faz parte de uma cultura e que, às vezes, tem doenças. Mas essas tais doenças – com suas classificações de acordo com a nomenclatura médica – geram sofrimento, que é determinado culturalmente e vivenciado de forma singular.
É por isso que se quer humanizar a Medicina: para que a pessoa sob cuidado se livre do papel de objeto e volte a ser considerado como alguém que está mergulhado em um contexto cheio de significados. Alguém que tem uma história, que faz parte de uma cultura e que, às vezes, tem doenças. Mas essas tais doenças – com suas classificações de acordo com a nomenclatura médica – geram sofrimento, que é determinado culturalmente e vivenciado de forma singular.
E daí a coisa pega.
As doenças
diagnosticadas e codificáveis cientificamente exigem tomadas de decisão
objetivas, descrita nos guidelines
clínicos, uma espécie de manual de procedimentos. Essas tomadas de decisão são
praticamente universais para tratar de males universais. E mal universal pode
ocorrer em qualquer lugar do planeta a qualquer hora, ou seja, é uma abstração.
Já o sofrimento
pede cuidado. É singular e exige escuta. É originado de uma doença
individualizada a partir da história, das condições de vida e da cultura de
cada um. Acontece com cada pessoa de um jeito particular e requer atenção
específica.
A partir disso, é
lícito pensarmos que a habilidade exigida do tratador de doença é diferente do
cuidador do sofrimento. E as escolas médicas ainda ensinam que as pessoas são
portadoras de doenças objetivas e universais e não de sofrimentos singulares,
inéditos. Temos que admitir: os médicos não foram treinados pra cuidar do
sofrimento. Quem sabe fazer isso aprendeu por educação familiar, vocação e
decisão. Não foi na escola.
Sou professor de
uma escola que forma médicos e fico feliz quando percebo que alguns
profissionais que entregamos para a sociedade demonstram que percebem a
existência desse atual “mal-estar-no-cuidar-do-sofrimento”. Esses serão
cuidadores. Por conta deles.
-o-