Pesquisar este blog

Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

TRATADOR DA DOENÇA E CUIDADOR DO DOENTE

Angelmar Constantino Roman
É pouco frequente alguém que procurou um médico dizer que se sentiu cuidado, que recebeu um atendimento satisfatório.
Não é estranho que médicos, profissionais que lidam com a dor e o sofrimento, sejam percebidos como insensíveis ou indiferentes? Esse fenômeno é tão relevante que hoje se fala em um “mal-estar na forma de dar a assistência médica.”  O objetivo deste artigo é refletir sobre essa complexa questão, sob a perspectiva da formação médica.
A Medicina, a partir do século XVIII, passou a se apoiar na Ciência de base Iluminista,  especialmente com os estudos de Morgagni (Itália) e Bichat (França). A partir de então, as doenças passaram a ser estudadas e tratadas como a manifestação de um problema existente em algum órgão,  tecido ou célula do corpo.

Essa metodologia de buscar, no mais profundo microscópico do corpo, a causa última das doenças se desenvolveu, formando uma base teórica que, aos poucos, empurrou pra fora das escolas médicas as visões sobre saúde e doença que não estivessem de acordo com os critérios do cientificismo iluminista da Modernidade.
É conhecido o relatório de um professor americano (Flexner) sobre as escolas médicas americanas e canadenses em 1910: metade delas pararam de receber subsídios das grandes fundações por não se pautarem pelos conceitos da Ciência e, com isso, tiveram que fechar suas portas.
Mas, afinal, o que mudou com a chamada Ciência da Modernidade ou Ciência Iluminista? Destaco algo fundamental: o pesquisador se distanciou do objeto de pesquisa, para melhor observá-lo. E, para melhor entender esse objeto, dividiu-o em suas partes constituintes. 
Essa visão metodológica trouxe avanços para a civilização, especialmente em relação ao desenvolvimento tecnológico. Mas trouxe também algumas contradições, como o mal-estar citado no início do texto.  Na Ciência Médica, o corpo humano não apenas passou a ser um objeto para estudo, mas foi fragmentado para permitir o seu estudo sistematizado. Com isso, houve um avanço magnífico no conhecimento do organismo humano e de suas patologias, mas o dono desse corpo foi ficando esquecido e também o contexto em que ele vivia. Estava preparado, assim, o caminho para a desumanização da prática médica.

É por isso que se quer humanizar a Medicina: para que a pessoa sob cuidado se livre do papel de objeto e volte a ser considerado como alguém que está mergulhado em um contexto cheio de significados. Alguém que tem uma história, que faz parte de uma  cultura e que, às vezes, tem doenças. Mas essas tais doenças – com suas classificações de acordo com a nomenclatura médica – geram sofrimento, que é determinado culturalmente e vivenciado de forma singular.
E daí a coisa pega.
As doenças diagnosticadas e codificáveis cientificamente exigem tomadas de decisão objetivas, descrita nos guidelines clínicos, uma espécie de manual de procedimentos. Essas tomadas de decisão são praticamente universais para tratar de males universais. E mal universal pode ocorrer em qualquer lugar do planeta a qualquer hora, ou seja, é uma abstração.
Já o sofrimento pede cuidado. É singular e exige escuta. É originado de uma doença individualizada a partir da história, das condições de vida e da cultura de cada um. Acontece com cada pessoa de um jeito particular e requer atenção específica.
A partir disso, é lícito pensarmos que a habilidade exigida do tratador de doença é diferente do cuidador do sofrimento. E as escolas médicas ainda ensinam que as pessoas são portadoras de doenças objetivas e universais e não de sofrimentos singulares, inéditos. Temos que admitir: os médicos não foram treinados pra cuidar do sofrimento. Quem sabe fazer isso aprendeu por educação familiar, vocação e decisão. Não foi na escola.
Sou professor de uma escola que forma médicos e fico feliz quando percebo que alguns profissionais que entregamos para a sociedade demonstram que percebem a existência desse atual “mal-estar-no-cuidar-do-sofrimento”. Esses serão cuidadores. Por conta deles.
-o-


sexta-feira, 16 de outubro de 2015

UMA DIFÍCIL DECISÃO

Ângelo Roman Neto                               
Levítico 17:14. “Não deveis comer o sangue de qualquer tipo de carne, porque a alma de todo tipo de carne é seu sangue. Quem o comer será decepado da vida.”
Esse excerto bíblico é um dos princípios das Testemunhas de Jeová para justificar o não consumo de carnes com sangue e, principalmente, a não aceitação de transfusão sanguínea.
Na minha especialidade, a Anestesiologia, cuidei de alguns pacientes Testemunhas de Jeová. Nunca tive complicação alguma, provavelmente pelo fato de os procedimentos dos quais participei como anestesista terem sido simples: não sangravam abundantemente e não ofereciam um risco maior ao paciente.

Todos os pacientes que passam no consultório com o anestesista antes do procedimento, informam tudo a respeito de sua saúde: suas comorbidades, doenças prévias, alergias, cirurgias realizadas, complicações anestésicas anteriores, enfim, uma série de informações que consideramos básicas. E nós, médicos, explicamos sobre o processo da anestesia,  inclusive sobre a possibilidade de transfusão de sangue.

Toda cirurgia, independente da complexidade, é passível de complicações. A perda maciça de sangue pode levar ao choque hemorrágico que, em muitos casos, só é revertido com a transfusão sanguínea. E como agem  os Testemunhas de Jeová que irão passar por procedimentos em que existe a possibilidade de transfusão?
Esses pacientes estão preparados para isso. Aparecem no hospital com artigos científicos, a Bíblia e, geralmente, com um advogado, caso precisem interferir juridicamente. Citam, além dos dogmas da religião, o uso da eritropoetina humana como forma de prevenir uma transfusão maciça transoperatória. 
A eritropoetina humana recombinante é um hormônio produzido naturalmente nos seres humanos, cuja função é, principalmente, regular a produção de células vermelhas do sangue, as hemácias. No pré e no pós-operatório pode ser uma alternativa à transfusão sanguínea, apresentando resultados satisfatórios em determinados casos. Porém, em cirurgias em que ocorre um sangramento abundante inesperado, a eritropoetina não é eficaz, já que sua ação começa apenas de duas a seis semanas após a administração, tempo muito longo no caso de uma emergência em situação de cirurgia.
Logo que me formei, fiz alguns plantões em um hospital de trauma, onde soube de algumas situações delicadas relacionadas ao tema. Me recordo de uma delas, muito impactante, mas que teve um final feliz. 
Era uma madrugada de inverno, corrida e agitada. Chega na emergência, trazida pelo SIATE, uma vítima de atropelamento, gravemente ferida e já entubada pelos socorristas no local do acidente. No pronto socorro, foi constatado que a vítima teria que passar por um procedimento cirúrgico de emergência.
Logo chegaram os familiares da vítima, acompanhados de um pastor, um advogado e amigos. Mesmo sabendo do estado grave do paciente disseram que ele era Testemunha de Jeová e que não deveria receber sangue. Justificaram o pedido citando a eritropoetina e excertos bíblicos.
O paciente precisava de sangue urgentemente. O que fazer?  O cirurgião chefe, com certeza, já tinha lidado com situações parecidas. Com perspicácia e rapidez admiráveis, antes de subir para a cirurgia, pegou a maca com o paciente e a levou para uma sala reservada. Lá, fechou as cortinas e a porta, pediu silêncio geral para toda a equipe e passou sangue ao paciente. Depois desse procedimento, foram para a sala de cirurgia.
Com certeza, se não tivesse sido feita a reposição de sangue, o paciente teria ido a óbito.
A cirurgia foi um sucesso. Os pais agradeceram muito o médico por ter salvado seu filho e por ter cumprido a decisão da família de não transfundir o sangue. O paciente se recuperou bem, o segredo foi mantido, o cirurgião se livrou de uma causa na justiça, e todas as pessoas ficaram preservadas, cada uma com a sua consciência. Se alguém será punido por isso algum dia, só Deus ou, se preferirem, Jeová, é quem sabe. 
-o-
Ângelo Roman Neto – Curitiba PR
· Graduação em Medicina (PUC PR - 2009).
· Residência em Anestesiologia (Hospital Cajuru).


sexta-feira, 2 de outubro de 2015

“SE PERDER O RIM, É SÓ FAZER HEMODIÁLISE!”



Marcus Vinicius

Fiz meu internato do sexto ano do curso de Medicina em Porto Alegre, no Hospital Conceição. Lá tive contato com profissionais médicos que me inspiram até hoje por seu conhecimento técnico e sensibilidade. Com esses caras, entendi a nossa profissão como uma mistura de Ciência e Arte, conhecimento científico aplicado com sabedoria e ética.

Durante o estágio de Pediatria, trabalhei com um preceptor (médico orientador) que me marcou demais. Ele era responsável pelo setor de internação de crianças, a maioria delas com diagnóstico de pneumonia. Esses pacientes eram internados pelo médico do pronto-socorro, que escolhia o antibiótico a ser usado durante toda internação. Quando nós, internos e residentes, chegávamos na enfermaria, apresentávamos os casos para o preceptor e discutíamos as condutas. Em quase todos os casos, ele trocava o antibiótico indicado pelo médico do pronto-socorro, por outro de menor espectro(1), portanto com menos efeitos colaterais, sem nenhum prejuízo para as crianças.

Eu ficava impressionado e  pensava: “Será que algum dia terei conhecimento e coragem para agir da mesma forma?” Quando você acerta, ótimo! O paciente não foi exposto a uma medicação que pode ter potenciais efeitos danosos como aumentar a resistência bacteriana, exterminar a flora normal do intestino, causando diarreia, etc. Mas, se você estiver errado, terá  oportunidade para corrigir seu erro?

Posteriormente, já na residência em Cardiologia, em outra cidade, me deparei com esse dilema. Tínhamos um paciente internado na UTI que apresentou uma infecção hospitalar grave: mediastinite. Após um período de uso de antibióticos de amplo espectro, ele começou a melhorar rapidamente.

Em uma das visitas que fiz a esse paciente na UTI, percebi que havia sido indicado um antifúngico chamado anfotericina B. Pensei: “Ele não teve piora do quadro clínico. Por que usar um medicamento cheio de efeitos colaterais, que pode, inclusive, trazer dano renal permanente, se não há evidência de infecção fúngica grave?” Fui conversar com a médica plantonista e ela me respondeu que havia prescrito aquele medicamente porque o paciente estava com temperatura de 38oC.

No contexto daquele paciente, essa temperatura não evidenciava piora da infecção. Lembrei, então, do meu preceptor de Pediatria no internato. Fiz um exame físico minucioso no paciente, olhei novamente todos os exames complementares, retirei o acesso venoso central - eu achei que a febre estava relacionada ao tempo prolongado de uso desse cateter - e tirei o medicamento antifúngico que havia sido indicado pela plantonista. No outro dia, o paciente tinha melhorado tanto que lhe dei alta da UTI. Fiquei contente por ter tomado aquela decisão.

No dia seguinte, fui chamado à Direção do hospital. Lá estavam a plantonista e meu chefe da residência. Fui acusado de irresponsável por ter suspendido a medicação sem autorização dela. A médica disse ainda que eu não tinha conhecimento suficiente para tomar essa conduta e que havia passado por cima do serviço de infectologia do hospital.

Argumentei que minha conduta não havia trazido dano ao paciente. Muito pelo contrário: havia o livrado de um risco grande de piora e até de perda definitiva da função renal caso aquele medicamento recomendado pela médica fosse aplicado. Diante de meus argumentos, a doutora retrucou: “Se perder o rim, é só fazer hemodiálise!”

Esse caso quase me levou à expulsão da residência, mas não me arrependo. O seguimento ambulatorial desse paciente mostrou que a conduta tomada havia sido a melhor. Não agi dessa forma para mostrar que minha colega estava errada. Apenas trato as pessoas como se estivesse tratando meus pais: com carinho, respeito e responsabilidade. Essa é a minha missão, essa é a minha arte.
                                                                                         


      
-o-








(1) Espectro se refere ao potencial de ação do medicamento. Antibiótico de amplo espectro é aquele que mata mais tipos de bactérias, mas que pode também trazer mais efeitos colaterais danosos ao paciente.