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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

AS PRÁTICAS HOLÍSTICAS E A COMPROVAÇÃO CIENTÍFICA


                     

                   As práticas holísticas e a comprovação científica  

 

Angel Mar Roman

 

Escrevi há algum tempo um artigo sobre as diversas visões acerca do tratamento de doenças, considerando que a cada metodologia corresponderia uma “igreja”: cada uma com sua liturgia e dogmas ou modelo de compreender,  desenvolver e avaliar o ato terapêutico.

É impossível não concordar que, pelo seu objeto de estudo, a Santa Madre Igreja da Biomedicina (apelidada, por Hahnemann, de “Alopatia”) desenvolve um corpo de doutrina importante e necessário. Porém, por ter se tornado hegemônica, por razões econômicas, políticas e sociais, passou a ser A visão da “realidade” e não apenas UMA das visões possíveis.

A partir dessa posição, muitos pastores dessa igreja ousam lançar julgamentos e avaliações de atos terapêuticos de fora de seus domínios, propostos por outras igrejas: a diluição homeopática não tem lógica dentro do repertório biomédico, portanto é fantasia;  os meridianos da acupuntura são outra fantasia, pois as ferramentas disponíveis não são capazes de pesar ou medir. E, se acaso, uma Fragaria (gênero de planta ao qual pertence o morango) tiver algum resultado detectável pelos seus instrumentais, certamente isso se deve a algum princípio de natureza material. Não há avaliação de processo. Só de resultados.


Além das equações


A Biomedicina é subsidiária da Ciência Moderna, inaugurada no século XVI, que promoveu a redução matemática do mundo e dos fenômenos da vida. Mesmo que esses saberes sejam insuficientes para o cuidado clínico,  uma vez que a vida é mais do que equações lógicas, a Biomedicina produziu sim importantes metodologias e ferramentas científicas para aferir eficácia e efetividade dos seus atos terapêuticos. Cito como exemplo a medicina baseada em evidência (MBE). Fármacos químicos TÊM que ser submetidos ao escrutínio da MBE, porque são de sua lavra, são produtos dessa igreja. 

A questão é que resultados que não podem ser pesados e medidos pelas ferramentas da prática hegemônica são desqualificados. Então, muitas vezes, quem se filia a outras igrejas que não a Alopatia tem que traduzir seus resultado para a nomenclatura da Biomedicina e seus indicadores: mortalidade, tempo de sobrevida, tempo de internação, etc., que fazem parte da gramática, ritos e regras dessa igreja hegemônica. 


Outros santos

 

Tudo bem agirmos assim, mas temos que cuidar para não crer que essa seja a verdadeira meta de nossa prática, pois essas ferramentas foram desenvolvidas com os pressupostos da Biomedicina e são insuficientes para aferir resultados de outras racionalidades. É preciso insistir que as racionalidades não biomédicas não são da Ciência. Usam outros ritos, professam outros santos. E, quando reivindicam o caráter de cientificidade, estão descaracterizando – traindo, se mantivermos a analogia com igrejas – sua liturgia.

A Homeopatia, assim como outras racionalidades médicas, não são da Ciência oficial, acadêmica. E isso está bem. Não há problema. Cada uma tem um corpo teórico próprio e suficiente (os homeopatas chamam sua teoria de “Filosofia”), que basta para avaliar se houve sucesso terapêutico.

Sabemos que há pastores e padres que se preocupam mais com o dízimo do que com sua missão de cuidar dos fiéis. Mas, certamente, a grande maioria desenvolve sua tarefa imbuído do desejo de ajudar as pessoas, amenizar sua dores, curar suas doenças e orientá-las para terem uma vida saudável. Se livrá-las do inferno, melhor ainda! Quero dizer que não há  conflito de interesses entre as igreja, apenas diversidade terapêutica, litúrgica e dogmática.

 

Religare

 

Gostaria, aproveitando o tema em debate, de fazer uma proposta religiosa: que os pastores das diversas igrejas menores se sentem juntos e conversem, compartilhando seus textos sagrados e liturgias, buscando o que é compatível com os missais da Santa Igreja Alopatia pensando na melhor forma de atender os fiéis.

O começo disso é escrever as diretrizes e construir a aliança dos profissionais que queiram participar. Ou o contrário: construir a aliança e, juntos, desenhar as diretrizes para relatar o percurso terapêutico que atingirá ou não o desfecho previsto.

Pra terminar: a Psicanálise – abominada pelos ortodoxos-fanáticos da Ciência – nunca se preocupou em ser científica. Não quis ir pra academia. Foi a academia que foi atrás dela. Então me pergunto: será que não devemos aprofundar nossa prática ampliadora e reencantadora da clínica biomédica e, com isso, oferecer para o pensamento hegemônico essa nossa ampliação?

 

-o-

 



domingo, 27 de setembro de 2020

CIÊNCIA HEGEMÔNICA E OUTROS SABERES: CADA SEITA COM SUAS REGRAS


 

CIÊNCIA HEGEMÔNICA E OUTROS SABERES: CADA SEITA COM SUAS REGRAS

                                                                                                   

Angel Mar Roman

 O senso comum é a via na qual todos trafegamos com os conhecimentos do cotidiano, acervo dinâmico que vai se atualizando continuamente, mas sempre se pautando pelo empirismo imediato e superficial. A forma tradicional de se comunicar esse tipo de conhecimento é pela oralidade. Hoje, em tempos de redes sociais, a transmissão se dá, cada vez mais, pela oralidade reproduzida na tela em textos digitados. Não há artigos científicos com os conteúdos do senso comum

  Embora estejamos necessariamente embebidos pelo senso comum,  a civilização nos obriga a transcendê-lo. Se não formos além das explicações que pairam na superficialidade de nossa compreensão, ou seja, se não questionarmos o que é mostrado como verdade única e absoluta, corremos o risco de aceitar que o mundo é plano, que iremos diminuir a violência armando a população, que os grandes e trágicos incêndios no pantanal são causados por índios e caboclos e outras nesciedades do mesmo nível.

  Por conta de uma demanda civilizacional, portanto, temos que ir além das obviedades. É assim então que,  à beira de tal via do senso comum, se instalam vários templos especializados em conhecimentos mais profundos. Vou utilizar o termo “igreja” para esses centros de saberes especializados que se comunicam com a via do senso comum, sem, contudo, se confundir com ele. Cada uma dessas igrejas tem suas crenças e liturgias específicas, que o senso comum não domina.

Igrejas são várias

  Pois bem, se formos no setor das igrejas que se dedicam a estudar as patologias humanas e seu tratamento e entrarmos, por exemplo, na Santa Madre Igreja da Biomedicina (apelidada, por Hahnemann, de “Alopatia”), veremos que ali há normas e leis para serem seguidas: um processo racional eminentemente lógico e quantitativo. Para decifrar seus códigos, há que seguir sua liturgia.

  Se entrarmos em outra igreja, por exemplo a Homeopatia, esta também tem sua própria liturgia, elaborada a partir de uma racionalidade sofisticada, que só é praticada e entendida por seus fiéis. Vamos encontrar outras possibilidades, visões e práticas em outras igrejas. Cada uma tem suas regras gramaticais, dogmas, rituais, procedimentos, quase sempre ininteligíveis aos fieis de outras correntes.

A cada visão, um gesto

  Em razão dessas especificidades litúrgicas, o objetivo de uma determinada ação terapêutica vai ser definido a partir da visão de doença, saúde e tratamento de cada igreja. Na igreja da Medicina Tradicional Chinesa, por exemplo, a meta pode ser equilibrar a energia Chi, avaliada segundo aferição dos pulsos. No enfoque da Homeopatia,  pode ser  a sensação de bem estar, como resultado do equilíbrio da energia vital. Ou, num limite de ousadia, poderíamos ouvir na igreja da Medicina Antroposófica que o resultado é atingido quando ocorre o reencontro do paciente com as tarefas cármicas de sua existência. 

  Não é difícil concluir que um ato terapêutico de uma igreja não pode ser avaliado pelos protocolos de outra igreja, pois as ferramentas de cada crença não são capazes de captar os gestos de outras visões religiosas. Os recursos e metodologias desenvolvidos por uma igreja para avaliação dos resultados de seus tratamentos são insuficientes ou inadequados pra avaliar resultados produzidos por outras igrejas.

O céu é pra todos!

  Isso se constata, por exemplo, quando um crente da biomedicina e um crente da homeopatia observam um tratamento de Psoríase. Na vigência de um tratamento homeopático (que será singular e focado no paciente, mais do que na doença isolada), em que os sintomas da pele inicialmente se exacerbem, a visão biomédica-alopática vai interpretar como piora da doença.

  Já, o homeopata vai gostar disso e, segundo sua liturgia, vai chamar de “agravação” (que precede a melhora profunda), pois é acompanhada de “sensação de bem-estar”. Por sua vez, o tratamento com corticoide, que poderia ser a opção do primeiro crente, para um homeopata ortodoxo, porém, seria “supressão” e o paciente seria castigado com o aprofundamento posterior da doença.

  Portanto, há a cosmovisão suportada pela religião da Ciência que, por ser hegemônica e normatizar a catequese escolar, pretende conter todas as outras e ser A ÚNICA. Mas é MAIS UMA forma de organizar o conhecimento das coisas e acontecimentos da vida e do mundo. 

-o-

 



domingo, 31 de maio de 2020

A CIÊNCIA COMO ARMA



A CIÊNCIA COMO ARMA

Anderson Roman

   “Nunca antes na história deste País” as trevas medievais foram tão exaltadas e estiveram tão associadas com o caos e a morte como agora. Período estranho, triste, doloroso. A pandemia se alastra, mortes e mortes se acumulam. 

   Primeiro se vão desconhecidos, invisíveis, distantes. Logo, porém, ficamos sabendo de conhecidos que foram atingidos. Dali a pouco alguns vizinhos. Depois, companheiros de trabalho. Quando perdemos um ente querido, aí sim a sensibilidade, antes ofuscada, aflora. 

   Enquanto isso, os que se suporiam líderes se entregam a um caminho completamente dissociado da realidade, da necessidade, daquilo para que foram escolhidos. Visam o próprio umbigo e de seus cúmplices. Propõem armas. Sim, armas de fogo. Como se um tiro pudesse matar um vírus RNA. Não! Tiro mata, na grande maioria das vezes, jovens pobres e negros. Não são eles os vírus. Tampouco são eles nosso mal. Nosso mal é de cerne. Somos madeira bichada, com cupins. E, para esse mal, o nosso verniz, o mata-cupim é a ciência.

   Devemos armar-nos  de ciência. Usá-la como arma contra as trevas, o fascismo, a intolerância, a ignorância. Pois é de ignorância que, principalmente, a ciência trata. E o faz construindo certezas. Certezas volúveis, pois se sabe que a ciência nunca a terá de forma absoluta e definitiva. Na ciência há sempre um s.m.j., salvo melhor juízo. 

   O que hoje sabemos é resultado da aplicação de um método, uma forma, um teste, um experimento, que levou a uma conclusão, a uma certeza provisória. O método adotado deve ser claro, límpido e reproduzível, pois, se eu consegui demonstrar, você também deve ser capaz. 

   Até o século XVIII, acreditava-se na chamada “geração espontânea” de larvas a partir de matéria orgânica em decomposição. Com o aprimoramento dos métodos de observação, verificou-se que as larvas eclodiam de ovos postos por moscas. Não se tratava de um ato divino que determinava o aparecimento de vida no material deteriorado. Era uma etapa do ciclo de vidas dos insetos que tanto nos desagradam.

   E é de método de observação que precisamos entender, de forma simples e direta, para, ao menos inicialmente, afastarmos as trevas da pseudociência, como aquela que afirma que um tratamento funciona em todos porque em um havia funcionado. 

   É preciso entender o que é acaso e futilidade, senão acabaremos achando que um copo de água com açúcar é a solução para as crises de pânico. E não perceberemos que é o gesto, o acolhimento daquele que leva o copo e dá o calor da atenção que atenua a crise, não o açúcar, nem a água. 

   Assim está o debate das cloroquinas e seu uso na pandemia. A conclusão sobre a eficácia desse medicamento no tratamento da COVID19 se baseou em uma observação do mesmo padrão metodológico daquela que concluiu que a matéria orgânica putrefata gerava espontaneamente moscas. 

   Já saímos da idade das trevas! Temos hoje métodos melhores que chegam a conclusões depois de muitas observações controladas cientificamente. E os estudos científicos, com metodologias confiáveis e observações sistematizadas, falam contra o uso das cloroquinas no combate ao Corona, pois elas trazem malefícios.

   O debate, porém, está tão obscurecido pelas paixões amplificadas pela ignorância, que não se propõe uma saída sensata e sustentada cientificamente, que seria um estudo clínico randomizado duplo cego. E a tragédia aflige hoje bons pesquisadores brasileiros, submetidos a pressões injustificadas, algumas delas vindas do Judiciário, leigo e movido pelo ânimo punitivo, quando deveria estar preocupado em criar condições para que o espírito científico se sobreponha à ignorância. Acabam predominando opiniões como aquelas que acreditavam na geração espontânea de moscas na matéria podre, dificultando o estudo honesto com métodos adequados pela ciência brasileira. 

   Esse cenário obscuro nos convida a refletir sobre nossas escolhas, nossos atos, nossa opinião e também nosso voto nas eleições. Essas escolhas têm reflexos importantes na vida de todos nós e diretamente na saúde pública e na morte daquele amigo que  nos deixou sem podermos nos despedir. 

   A Medicina tem limites. A ciência tem limites. Esses limites, porém, podem ser administrados e superados quando os responsáveis pela condução do país possuem discernimento, esclarecimento e sensibilidade política e social. Para esse flagelo, infelizmente, não temos ainda perspectivas de superação.

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