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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017

À SOMBRA “DELE”




À SOMBRA “DELE”
Anderson Roman
O consultório médico é feito de olhares e ouvidos. Olhamos buscando enxergar o que nem sempre é visível. Vendo podemos saber. Mas é no ouvir que se encontra mais do escondido. As palavras revelam sem querer. Em geral se deixa escapar o segredo na combinação das palavras. Aconteceu uma vez, e me causou estranheza. Daí foram se repetindo os relatos e ainda hoje os escuto. Não é queixa nunca. É pano de fundo. Como se fosse o terreno preparado para plantar uma doença, um mal, um sofrimento.
A palavra é “ele”. Dita ao longo de uma conversa, de uma descrição de sintomas, de um detalhamento do problema, sempre aparece um “ele” ou “dele”, como se estivesse presente no consultório. Como se estivesse ali ao lado, dominando, observando, dizendo: “estou aqui, não me ignore nunca ou sofrerá as consequências”. E me parece que sofrer é o verbo adequado.
Em geral são mulheres de meia idade ou idosas, de baixa escolaridade e que não têm trabalho próprio. Dependem “dele” para ir e vir, para viver. Não tem acesso a dinheiro sem a autorização “dele”, não sabem quanto se ganha, quanto se tem, o que se tem. A depressão acompanha muitas delas. As doenças são frequentemente relacionadas com tensão, estresse ou até opressão. Muito comum a queixa feminina de dores sexuais, de dores urinárias por um sexo mal feito ou de um interesse só, de um descuido com a parceira. Não tenho ouvido isso de jovens, o que me alegra. Mas delas também ouço, sem ser dito, de dores de maus amores.
E cá penso: onde o ser humano pode buscar a dureza de não sentir o outro que está a seu lado, com quem junto vive e a quem jurou amor?  De onde vem essa frieza de não se importar com suas dores? E de até provocar dores?
Já recebi “ele” em carne viva, em consulta. O olhar é desconfiado. “Ele” a chama de “essa aí”. Em geral há um desconforto no ar. Se “ele” é o que veio buscar orientação, há um profundo menosprezo pelas opiniões “dessa aí”. Mas em geral “essa aí” é mais centrada, fala dócil, querendo ajudar. Uma cuidadora constante. Na rara situação em que “ele” acompanha “essa aí”, há uma tendência a simplificar as queixas, minimizar suas importâncias. Em geral sai um “eu falo isso para ela”, ou um “ela não se ajuda”. A opressão é quase visível. É estranho o quase sentir algo que não é dito ou não é visível, mas Medicina tem dessas coisas. Com o tempo, o médico se torna mais perceptível, se de fato quiser.
Nos hospitais, por outro lado, vi muito senhoras cuidarem, de forma profundamente carinhosa, de seus maridos na beira da morte. Como são coadjuvantes, para nós médicos elas falam muito pouco de si ou dos defeitos do doente. Mas é para os enfermeiros, ou para as cuidadoras do leito vizinho, para as senhoras da copa (que servem as refeições), que as histórias são contadas, sem os filtros. As amarguras são lentamente expostas. É um suco difícil de extrair. Histórias de maus tratos e crueldades, de traição. Há culpa, pois “ele” está doente. Mas quando o esposo se vai, as vejo perder parte da sua vida. É tal penetração no íntimo que parece gerar dependência.
Nélida Piñon, no conto “I love my husband”, da coletânea “Elas por elas”, traz uma personagem que escreve: “Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre.”
O escritor moçambicano Mia Couto tem especial sensibilidade ao assunto. No livro “Fio das Missangas”, descreve uma mulher indo ao hospital cuidar do seu esposo e o que se passa na sua cabeça. As frases que destaco abaixo são da personagem, mas muitas delas devem passar na cabeça dessas mulheres, oprimidas por uma sombra, por “ele”:
“Hoje será como todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será essa a diferença. Ele nunca me escutou.”
“A comida era onde eu não me via recusada.”
“O silêncio abriu um correio entre mim e o moribundo. Agora, pelo menos, já não sou mais corrigida. Já não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.”
“- Você, marido, enquanto vivo me impediu de viver.”
“...até aqui, apenas soube de mim pelos olhos do meu marido.” - Mia Couto em “Sombras da água”.

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