À SOMBRA “DELE”
Anderson Roman
O consultório médico é feito de olhares e ouvidos. Olhamos
buscando enxergar o que nem sempre é visível. Vendo podemos saber. Mas é no
ouvir que se encontra mais do escondido. As palavras revelam sem querer. Em
geral se deixa escapar o segredo na combinação das palavras. Aconteceu uma vez,
e me causou estranheza. Daí foram se repetindo os relatos e ainda hoje os
escuto. Não é queixa nunca. É pano de fundo. Como se fosse o terreno preparado
para plantar uma doença, um mal, um sofrimento.
A palavra é “ele”. Dita ao longo de uma conversa, de uma descrição
de sintomas, de um detalhamento do problema, sempre aparece um “ele” ou “dele”,
como se estivesse presente no consultório. Como se estivesse ali ao lado,
dominando, observando, dizendo: “estou aqui, não me ignore nunca ou sofrerá as
consequências”. E me parece que sofrer é o verbo adequado.
Em geral são mulheres de meia idade ou idosas, de baixa
escolaridade e que não têm trabalho próprio. Dependem “dele” para ir e vir,
para viver. Não tem acesso a dinheiro sem a autorização “dele”, não sabem
quanto se ganha, quanto se tem, o que se tem. A depressão acompanha muitas
delas. As doenças são frequentemente relacionadas com tensão, estresse ou até
opressão. Muito comum a queixa feminina de dores sexuais, de dores urinárias
por um sexo mal feito ou de um interesse só, de um descuido com a parceira. Não
tenho ouvido isso de jovens, o que me alegra. Mas delas também ouço, sem ser
dito, de dores de maus amores.
E cá penso: onde o ser humano pode buscar a
dureza de não sentir o outro que está a seu lado, com quem junto vive e a quem
jurou amor? De onde vem essa frieza de não
se importar com suas dores? E de até provocar dores?
Já recebi “ele” em carne viva, em consulta. O olhar é
desconfiado. “Ele” a chama de “essa aí”. Em geral há um desconforto no ar. Se
“ele” é o que veio buscar orientação, há um profundo menosprezo pelas opiniões
“dessa aí”. Mas em geral “essa aí” é mais centrada, fala dócil, querendo
ajudar. Uma cuidadora constante. Na rara situação em que “ele” acompanha “essa
aí”, há uma tendência a simplificar as queixas, minimizar suas importâncias. Em
geral sai um “eu falo isso para ela”, ou um “ela não se ajuda”. A opressão é
quase visível. É estranho o quase sentir algo que não é dito ou não é visível,
mas Medicina tem dessas coisas. Com o tempo, o médico se torna mais
perceptível, se de fato quiser.
Nos hospitais, por outro lado, vi muito senhoras cuidarem,
de forma profundamente carinhosa, de seus maridos na beira da morte. Como são
coadjuvantes, para nós médicos elas falam muito pouco de si ou dos defeitos do
doente. Mas é para os enfermeiros, ou para as cuidadoras do leito vizinho, para
as senhoras da copa (que servem as refeições), que as histórias são contadas,
sem os filtros. As amarguras são lentamente expostas. É um suco difícil de
extrair. Histórias de maus tratos e crueldades, de traição. Há culpa, pois
“ele” está doente. Mas quando o esposo se vai, as vejo perder parte da sua vida.
É tal penetração no íntimo que parece gerar dependência.
Nélida Piñon, no conto “I love my husband”, da coletânea
“Elas por elas”, traz uma personagem que escreve: “Só envelhece quem vive,
disse o pai no dia do meu casamento. E porque viverás a vida do teu marido, nós
te garantimos, através deste ato, que serás jovem para sempre.”
O escritor moçambicano Mia Couto tem especial sensibilidade
ao assunto. No livro “Fio das Missangas”, descreve uma mulher indo ao hospital
cuidar do seu esposo e o que se passa na sua cabeça. As frases que destaco
abaixo são da personagem, mas muitas delas devem passar na cabeça dessas
mulheres, oprimidas por uma sombra, por “ele”:
“Hoje será como
todos os dias: lhe falarei, junto ao leito, mas ele não me escutará. Não será
essa a diferença. Ele nunca me escutou.”
“A comida era onde
eu não me via recusada.”
“O silêncio abriu
um correio entre mim e o moribundo. Agora, pelo menos, já não sou mais
corrigida. Já não recebo enxovalho, ordem de calar, de abafar o riso.”
“- Você, marido,
enquanto vivo me impediu de viver.”
“...até aqui,
apenas soube de mim pelos olhos do meu marido.” - Mia Couto em
“Sombras da água”.
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