Dirceu Reis da Silva
A formação médica tem foco nas doenças, em suas causas,
seus diagnósticos e nas estratégias para produzir um retorno à saúde. Os
estados de doença são referidos com detalhes e objetividade. Já o campo da
saúde não tem merecido a mesma atenção. Atuar a partir da perspectiva da saúde
vai depender da postura de cada profissional, ou seja, é uma prática repleta de
subjetividade. Talvez o relato de um caso possa ilustrar melhor a opção pelo
segundo caminho.
Ela saía de casa, para a consulta, bem cedo em um
transporte da prefeitura, que percorria 150 km até o hospital. Chegava ainda em
jejum, pois deveria fazer alguns exames. Nas mãos, trazia apenas suas anotações
e um lanche. Ao lado do hospital, havia uma área de peregrinação católica, onde
ficava alguns minutos em introspecção religiosa. Pensava na irmã que, portadora
da mesma doença que atingia seus rins, tinha sido uma boa companheira até
falecer um ano antes. Chamada para a consulta, entrava sempre sorridente e bem
disposta, parecendo sentir-se em casa. Os 56 anos não lhe tiravam a vontade de
conversar e o interesse pelas pessoas.
Naquele dia, em especial, estava animada com a boa evolução de um
câncer de mama que a havia atingido no último ano, e de cuja mastectomia vinha se
recuperando muito bem. Então ela disse: “Agora que estou bem do problema da
mama, vou tratar logo do meu transplante de rim!” Perguntei então: “Mas
a senhora sabia que teria de esperar algum tempo após a retirada da mama para
poder ser transplantada, não é?” Com tristeza, respondeu: “Não, doutor,
não sabia. Tem mais isso?”
Inclinou a cabeça em direção às suas mãos repousadas sobre
os joelhos, e a postura de derrota invadiu a sala. Os olhos tentavam
reencontrar a sustentação emocional que lhe permitia trilhar o caminho difícil
da enfermidade renal crônica que, à imagem e semelhança da sua irmã falecida,
era percorrido com serenidade e determinação. Duas lágrimas caíram rápidas, e
seu rastro foi logo desfeito com um lenço que sua mão já procurara, hábil na
perseguição de outras tantas lágrimas que já lhe haviam nascido dos olhos
castanhos.
Fiz silêncio para que ela pudesse se recompor, e foram poucos segundos
para que ela erguesse a cabeça e falasse: “Há tempo pra tudo.” Admirado de sua resignação, comentei: “A
senhora tem sido uma lutadora. Acompanhei seus problemas da mama e sei que a
senhora enfrentou tudo do jeito correto. Não estou falando sobre uma doença que
a senhora desconhece, mas sobre um tempo que devemos esperar para termos uma
cura bem certinha do câncer, para que então o transplante do rim, com riscos
menores, possa ser tentado.” Conformada, ela observou: “Sim, doutor, a
vida dá a pedra no caminho, mas dá as pernas para contornar.”
Resiliência é um conceito da Física, utilizado nas ciências humanas
para designar a capacidade de recuperação da normalidade psíquica e da
funcionalidade sociopessoal depois de eventos adversos graves. A resiliência parece
depender de fatores inatos, do entorno do indivíduo (família e sociedade) e de
crenças compartilhadas.
A paciente precisou adaptar-se à doença renal hereditária,
assistiu à trajetória dramática da irmã, sobreviveu a um câncer de mama, e via
suas expectativas de transplante frustradas. Para seguir a vida, ela desenvolveu
atitudes positivas em seu cotidiano, utilizou vínculos familiares suportivos,
fortaleceu suas ligações emocionais, explorou seu temperamento compassivo e
valeu-se de sua fé religiosa. Tudo isso compõe seu horizonte de resiliência: além
de identificá-la, define para ela o quanto vale a pena manter-se forte e mostra
em que se apoiar quando necessita.
É necessário reconhecer que a Medicina tem limites e também voltar a atenção
para o que existe além desses limites. Para uma interação produtiva com os pacientes,
é importante não apenas se dedicar ao entendimento dos fenômenos que os fazem adoecer,
mas identificar os fatores preservadores da vida que fazem sentido para eles. Nossos
limites são menores quando estamos juntos.
-o-
Dirceu Reis da Silva
·
Graduação em Medicina pela Universidade
Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA)
· Residência Médica em Nefrologia pela Irmandade Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre
·
Mestrado em Medicina e
Ciências da Saúde pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS)
· Médico nefrologista do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e do
Instituto de Doenças Renais (IDR).