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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

quarta-feira, 14 de março de 2018

COMO SER MÉDICO NO SÉCULO XXI?



COMO SER MÉDICO NO SÉCULO XXI?

Marcus Vinicius

Um dia desses, atendi um paciente de 55 anos de idade. Ao entrar no consultório, sentou-se e colocou uma sacola cheia de exames em cima da mesa.

Perguntei: “Como posso ajudar o senhor?”

Com um olhar angustiado, ele respondeu: “Procurei um cardiologista porque estava sentindo dores no peito durante minhas caminhadas matinais. Como tenho casos de problema cardíaco na família, fiquei preocupado e resolvi investigar. Fiz um cateterismo que mostrou veia entupida no coração. Disseram que tenho que colocar stent, uma espécie de molinha, para desobstruir a veia. Gostaria de pegar uma segunda opinião porque li no jornal, um artigo recente, que dizia que essas molinhas não são tão boas quanto imaginamos. Agora não sei o que fazer!”

Fiz faculdade no século passado, me formei e iniciei minha vida profissional no século XXI. Durante a graduação, ia até a biblioteca em busca de artigos científicos com novidades. Encontrava livros da década de setenta e, com muita sorte, dos anos oitenta. Essa era a realidade da minha Universidade.

Tive meu primeiro contato com a internet no internato, nos anos 2000. Naquela época, a navegação na rede se dava através das conexões discadas, muito lentas. Demorava horas para você abrir um simples e-mail.

A única forma de se manter atualizado era por assinatura de revistas estrangeiras que recebíamos pelo correio. Quando chegavam, porém, essas publicações não traziam mais nenhuma novidade e muitas verdades já tinham sido derrubadas por novas evidências.

No século passado, o médico era dono de uma verdade absoluta, inquestionável. O paciente era passivo e não se permitia questionar uma palavra sequer. O Doutor tinha uma espécie de poder divino que proporcionava uma previsão de eventos futuros, sem levar em conta probabilidades e incertezas.

 O desenvolvimento tecnológico e a massificação da internet, no século XXI, promoveram uma grande mudança de paradigma em todas as áreas do conhecimento humano. A democratização da informação, propiciada especialmente com a popularização de ferramentas de busca na internet como o Google, trouxe, dentre outras consequências, a fragilização do poder que se estabelecia no passado apenas por se ter acesso privilegiado à informação especializada. Hoje as verdades duram muito pouco, por conta da grande velocidade de transmissão das informações e da facilidade de acesso a essas informações.

Atualmente é comum atendermos pacientes que chegam com diagnósticos prontos, pedindo para solicitarmos determinados exames complementares para confirmar sua hipótese ou, como neste exemplo, vem pedir uma outra opinião por ter informações atualizadas sobre sua doença.

     Vemos que existe hoje mais participação do paciente em relação à investigação e à terapêutica de sua patologia.  O artigo comentado pelo meu paciente refere-se ao ensaio clínico inglês, publicado na revista Lancet, chamado Orbita.
(http://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(17)32714-9/fulltext)

Esse estudo, que foi conduzido com todo rigor científico necessário, mostrou que pacientes que tinham lesões (obstruções) coronarianas graves e que foram submetidos à angioplastia com implante de stents (“molinhas”) não tiveram um melhor controle da angina (dor no peito) em relação ao outro grupo que fez tratamento com medicamentos e sem angioplastia. Nesse estudo, não foram incluídos pacientes com as chamadas síndromes coronarianas agudas que incluem o infarto agudo do miocárdio e angina instável.

Essas informações devem ser compartilhadas com os pacientes pois esses estudos resultaram em mudança de uma conduta que era rotineira e adotada durante muitos anos. Lesões obstrutivas coronárias, mesmo estáveis, eram sinônimo de tratamento com stent.

No caso do paciente acima citado, conversamos e tomamos a decisão de manter o tratamento medicamentoso com rigoroso controle dos fatores de risco para doença coronariana, além de modificações no estilo de vida e retornos periódicos ao consultório.

Em tempos de compartilhamento rápido de informações, vulgarização do conhecimento acadêmico e constantes mudanças, estamos caminhando e aprendendo a lidar com os desafios de exercer a profissão de médico no século XXI.



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