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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sábado, 14 de maio de 2016

SOBRE A INQUIETUDE DAS CRIANÇAS DENTRO DE UM MUNDO INSONE


Angelmar Constantino Roman 
De uns tempos pra cá, médicos de família e pediatras têm ouvido dos pais queixas semelhantes sobre seus filhos: desobediência, agressividade e muita, muita agitação. A maioria é de meninos. E, daí, já estão praticamente preenchidos os critérios para o diagnóstico fast-food de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e suas medicações consequentes.
Para começo de conversa: crianças não tocam baile; apenas dançam a música que ouvem. Atentas ao som, ao ritmo, ao estilo, tentam, com seus passos imaturos e vacilantes, participar da roda musical. Mas, afinal, que baile é esse e que repertório musical está sendo orquestrado que faz com que tais crianças se agitem tanto?
Um dos fatores que desencadeiam o tal TDAH, segundo as observações técnicas, são as demandas escolares, ou crises em famílias disfuncionais.
Um critério adicional geralmente recomendável para se diagnosticar o TDAH é o consenso sobre os sintomas entre os pais e ao menos dois professores. E existem os questionários. Um deles é indicado como padrão ouro, mas tem direitos autorais e é considerado caro até para os padrões americanos (http://www.mhs.com/clinical.aspx?id=OnlineAssessment).
 também, disponível gratuitamente, um questionário para pais e professores, com a ressalva de que não deve ser utilizado como única ferramenta diagnóstica (http://www.nichq.org/childrens-health/adhd/resources/vanderbilt-assessment-scales). Olhei alguns itens e estimo que, se aplicado, esse questionário indicaria diagnóstico de TDAH em pelo menos 70% de meninos que estudem em salas com mais de 40 alunos. Especialmente se forem como as salas de aula que vejo quando visito a escola do bairro onde fica a unidade de saúde em que atendo. Volto eu de lá enlouquecido e desesperado pra tomar alguma ritalina...
Ignorando ou desafiando as regras estabelecidas nas escolas (que parecem surdas, essas sim, à musica do baile contemporâneo) esses cavalinhos - indomáveis, graças a Deus - são encaminhados oficialmente por seus sofridos professores e professoras para nós, os médicos.
Chamar a nós, médicos, para dar conta dessa situação é, me parece, tão inadequado quanto encarregar a polícia de gerir a questão complexa das drogas, ou nomear os padres para falarem sobre comportamento sexual. Os médicos, porém, parecem ter aceitado a condução arbitrariamente biofarmacológica desse imbróglio. Daí, com um bocejo sistemático, fornecemos as algemas químicas - conhecidas como ritalina - pra sedarem os respectivos meninos-com-fogo-no-rabo.
Dar apenas remédios, apesar de ser a conduta mais frequentemente adotada, é descabida e perigosa: os derivados anfetamínicos utilizados, tipo ritalina, podem desencadear desde insônia, redução do apetite, até surto psicótico. É preciso uma abordagem multimodal, dada a complexidade e a dimensão social da questão. As diretrizes para tratamento enfatizam que os fármacos são apenas PARTE do tratamento. As intervenções psicoterapêuticas ou de orientações para pais, além de conversa com professores, são o cerne do manejo. Estabelecer para a criança uma agenda de atividades diárias e fazê-la seguir esse programa com rigor parece ser também uma importante medida.  
Paralelamente a essas ações, que tal se discutíssemos o papel dos pais, que fazem coro ao discurso atualmente vigente de que criança é projeto para um futuro exitoso? Que tal se repensássemos a missão da escola, que parece ser inquestionável, de preparar nosso filhos para serem “profissionais bem sucedidos” e “adultos de sucesso”? Que tal se refletíssemos sobre o que é sucesso, afinal, e se o preço que se paga por ele vale a pena?
Parece que o mais cômodo, ou conveniente, tem sido continuar acreditando que estamos “formando” nossos filhos para "um mundo competitivo”. E, cada vez mais, vamos buscar o médico para indicar algum fármaco que emudeça os gritos que essa  linha de montagem educacional desencadeia.
Há uma réstia de luz e dúvida em tudo isso: será que o agito e grito dessa turminha, que, do alto de nossa arrogância classificadora, rotulamos como distúrbio, não seria um vagido, que em vão tentamos calar, de denúncia do mal estar geral da civilização? 
-o-