Angelmar Constantino Roman
De uns tempos pra cá, médicos
de família e pediatras têm ouvido dos pais queixas semelhantes sobre seus
filhos: desobediência, agressividade e muita, muita agitação. A maioria é de
meninos. E, daí, já estão praticamente preenchidos os critérios para o
diagnóstico fast-food de transtorno
de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH) e suas medicações consequentes.
Para começo de conversa:
crianças não tocam baile; apenas dançam a música que ouvem. Atentas ao som, ao
ritmo, ao estilo, tentam, com seus passos imaturos e vacilantes, participar da
roda musical. Mas, afinal, que baile é esse e que repertório musical está sendo
orquestrado que faz com que tais crianças se agitem tanto?
Um dos fatores que
desencadeiam o tal TDAH, segundo as observações técnicas, são as demandas
escolares, ou crises em famílias disfuncionais.
Um critério adicional geralmente
recomendável para se diagnosticar o TDAH é o consenso sobre os sintomas entre
os pais e ao menos dois professores. E existem os questionários. Um deles é
indicado como padrão ouro, mas tem direitos autorais e é considerado caro até
para os padrões americanos (http://www.mhs.com/clinical.aspx?id=OnlineAssessment).
Há também, disponível gratuitamente, um
questionário para pais e professores, com a ressalva de que não deve ser
utilizado como única ferramenta diagnóstica (http://www.nichq.org/childrens-health/adhd/resources/vanderbilt-assessment-scales).
Olhei alguns itens e estimo que, se aplicado, esse questionário indicaria
diagnóstico de TDAH em pelo menos 70% de meninos que estudem em salas com mais
de 40 alunos. Especialmente se forem como as salas de aula que vejo quando
visito a escola do bairro onde fica a unidade de saúde em que atendo. Volto eu de
lá enlouquecido e desesperado pra tomar alguma ritalina...
Ignorando ou desafiando
as regras estabelecidas nas escolas (que parecem surdas, essas sim, à musica do
baile contemporâneo) esses cavalinhos - indomáveis, graças a Deus - são
encaminhados oficialmente por seus sofridos professores e professoras para nós,
os médicos.
Chamar a nós, médicos,
para dar conta dessa situação é, me parece, tão inadequado quanto encarregar a
polícia de gerir a questão complexa das drogas, ou nomear os padres para falarem
sobre comportamento sexual. Os médicos, porém, parecem ter aceitado a condução
arbitrariamente biofarmacológica desse imbróglio. Daí, com um bocejo sistemático,
fornecemos as algemas químicas - conhecidas como ritalina - pra sedarem os
respectivos meninos-com-fogo-no-rabo.
Dar apenas remédios,
apesar de ser a conduta mais frequentemente adotada, é descabida e perigosa: os
derivados anfetamínicos utilizados, tipo ritalina, podem desencadear desde
insônia, redução do apetite, até surto psicótico. É preciso uma abordagem
multimodal, dada a complexidade e a dimensão social da questão. As diretrizes
para tratamento enfatizam que os fármacos são apenas PARTE do tratamento. As
intervenções psicoterapêuticas ou de orientações para pais, além de conversa
com professores, são o cerne do manejo. Estabelecer para a criança uma agenda
de atividades diárias e fazê-la seguir esse programa com rigor parece ser também
uma importante medida.
Paralelamente a essas
ações, que tal se discutíssemos o papel dos pais, que fazem coro ao discurso
atualmente vigente de que criança é projeto para um futuro exitoso? Que tal se
repensássemos a missão da escola, que parece ser inquestionável, de preparar
nosso filhos para serem “profissionais bem sucedidos” e “adultos de sucesso”? Que
tal se refletíssemos sobre o que é sucesso, afinal, e se o preço que se paga
por ele vale a pena?
Parece que o mais
cômodo, ou conveniente, tem sido continuar acreditando que estamos “formando”
nossos filhos para "um
mundo competitivo”. E, cada vez mais, vamos buscar o médico para indicar algum
fármaco que emudeça os gritos que essa linha de montagem educacional
desencadeia.
Há uma réstia de luz e
dúvida em tudo isso: será que o agito e grito dessa turminha, que, do alto de
nossa arrogância classificadora, rotulamos como distúrbio, não seria um vagido,
que em vão tentamos calar, de denúncia do mal estar geral da civilização?
-o-