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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

terça-feira, 24 de outubro de 2017

OS EXCLUÍDOS


OS EXCLUÍDOS
Carlos Alberto de Assis Viegas
A luz vermelho-alaranjada do ocaso, refletida nas vidraças quebradas da casa abandonada no centro da cidade grande, se confunde com labaredas imaginárias. Pela rua estreita, o fluxo de pedestres diminui e, sob a marquise, que parece querer cair, forma-se um aglomerado de pessoas que aumenta, à medida que o dia vai escurecendo. Agora, elas parecem vultos que circulam no mesmo lugar e as chamas dos seus isqueiros parecem vagalumes, não fosse sua intensa luminosidade. O som de sirenes ao longe não os incomoda.
Frio outonal
O manto negro da noite
Cai sobre todos nós

Pode-se pensar em dependência/adição como criação da mente, na maioria das vezes mascarada por comportamentos como excesso de trabalho, álcool, drogas lícitas e ilícitas, sexo, jogo e várias outras distrações. Devemos compreender que esses comportamentos são experiências ligadas não apenas à mente, mas também ao corpo e aos nossos sentidos.

Quando qualquer dos nossos sentidos ou nossa mente entra em contato com um objeto ou um pensamento, ocorrerá inevitavelmente uma sensação que pode ser agradável, desagradável ou neutra. Se agradável, buscamos repetir essa sensação. Se desagradável, procuramos evitá-la.  Tanto o desejo pela sensação agradável quanto a evitação da sensação desagradável têm sua origem nos sentidos e na mente e, quando descontrolados, passamos a viver o jogo das sensações variando entre a fissura e a aversão.

Como se sabe, a dependência química pode alterar as funções orgânicas, modificando circuitos cerebrais que envolvem os comportamentos de reforço, memória, aprendizado, motivação, atividade motora, etc. Dessa forma, o consumo de drogas é abordado pela Medicina como fator de risco potencial para desencadear transtornos mentais e/ou físicos e, pela saúde pública, como um fator para faltas ao trabalho/escola, bem como para uma maior demanda por serviços de saúde.

Parece que essa visão equivocada é que orienta o Estado a pretender fazer a prevenção e tratar “todos os dependentes de drogas” com a medicalização. Para tanto, procuram classificar os usuários quanto ao consumo como normal ou doentio, ou tentam quantificar os danos potenciais do consumo. Tudo isso talvez por não querer enfrentar os problemas sociais e econômicos envolvidos em tal situação. Entendemos que a efetividade das leis e atitudes proibitivas que insistem em “guerrear contra as drogas” deva ser reavaliada e que a questão passe a ser abordada com competência, urgência, gentileza e compaixão.

Além dessa relação “policialesca” que o Estado mantém com a drogadição, a dependência química é frequentemente um tema desconfortável para os profissionais de saúde, que costumam ter uma imagem negativa dos dependentes, na maioria das vezes por terem informação insuficiente sobre dependência e seu tratamento. Essa atitude pode trazer impacto negativo sobre os cuidados com essas pessoas, as quais também podem reagir negativamente aos seus cuidadores, fazendo com que o resultado das abordagens seja ineficaz.

Mas existem também outros grupos de excluídos que chamam menos a nossa atenção. Esses marginalizados, muitos deles vítimas também da drogadição, podem ter sido vítimas de experiências cruéis por não terem correspondido aos anseios e expectativas projetados pela família e/ou sociedade, cada vez mais focadas no lucro e centradas no indivíduo, ignorando o contexto coletivo do qual ele faz parte.

Se, desde que nascemos, tentam nos impor papéis que podem não ter nada a ver com nossos desejos e possibilidades, é natural que nos desviemos. E, quando nos desviamos a ponto de parecermos ameaçadores, pensam: “Devem ser punidos!” A forma de punição mais habitual é a exclusão, via discriminação, que nos causa profundo sofrimento psicológico e, muitas vezes físico, decorrente de atitudes e pensamentos nocivos que nos julgam, nos criticam, nos dizem que não somos bons, que não somos louváveis, enfim, que devemos nos odiar.

Assim, nossa sociedade, cada vez mais líquida em suas relações, vai criando excluídos de diversos matizes, muitas vezes considerados lixos sociais. Entendemos que não é com canhões de jato d’água, cães farejadores nos calcanhares, camisas de força, jaulas ou fármacos que esses problemas serão equacionados.

Sim, cai sobre todos nós, especialmente sobre nós médicos, o pesado manto da responsabilidade de lidar com essas questões. Reconhecendo os limites da Medicina, creio que, para amenizar o flagelo social trazido por essas exclusões, a prescrição de medicamentos e de medidas higienizadoras deve ser sempre precedida de um questionamento sobre os valores de nossa sociedade.

-o-
Carlos Alberto de Assis Viegas
·      Graduação em Medicina pela UnB.
·      Mestrado em Pneumologia pela UFRGS.
·      Doutorado em Fisiopatologia Respiratória pela Universitat de Barcelona.
·      Pós-doutorado pela University of Pennsylvania.
·      Professor Associado da UnB.
·      Seguidor do Shin Budismo e aprendiz de haijin (haicai).




sexta-feira, 22 de setembro de 2017

ESCOLHAS


ESCOLHAS
Ângelo Roman Neto

Em uma maca estacionada no corredor do Centro Cirúrgico, estava um paciente aguardando sua cirurgia. Eu estava de plantão nessa noite. Como de praxe, nós, anestesiologistas, conversamos com os pacientes antes dos procedimentos cirúrgicos e, sempre que possível, também em cirurgias de emergência, que era o caso daquele jovem.

Antes de encontrá-lo, verifiquei seus dados e vi que o procedimento seria o de uma drenagem de hematoma em bolsa escrotal. Fui ao encontro dele.

O rapaz, muito educado e tranquilo, respondeu às minhas perguntas naturalmente. Perguntei sua idade, peso, se tomava algum medicamento, enfim, uma anamnese prévia ao procedimento. Pedi que contasse o que havia ocorrido e como havia surgido o hematoma, se tinha sofrido um trauma no local machucado, como uma pancada. Ele respondeu que não, e apresentou uma justificativa surpreendente.

D.H.S. era casado, pai de uma filha de 3 anos e queria se tornar uma mulher. Sua esposa o apoiava, inclusive. Tomado por seu desejo, comprou livros de cirurgia e anatomia, instrumentos cirúrgicos, e retirou os próprios testículos. Queria que seu corpo parasse de produzir testosterona, hormônio masculino produzido pelos testículos, para se tornar mulher. Seu procedimento teve sucesso e também complicações. Após um sangramento no local, formou-se um hematoma. Daí, precisou ir ao hospital.  

Encaminhei o paciente à sala de cirurgia. Antes de colocá-lo sob anestesia geral, ele ainda me perguntou se existia a possibilidade de o pênis ser retirado na mesma operação. Expliquei que não seria possível, pois, para tal intervenção, era necessário que se cumprissem requisitos rigorosos em um processo que exigia atenção e acompanhamento especializado de profissionais de várias áreas médicas.

Tudo correu muito bem. O problema do hematoma foi resolvido. Os procedimentos resolveram a complicação e o paciente teve alta dois dias depois.

Imagino que muitas pessoas se impressionem com o que ele fez ao próprio corpo. Mutilação, loucura, insanidade? Confesso que também me impressionei. Ainda mais com a coragem que ele teve. Seu desejo levado às últimas consequências. Sua vontade respeitada por sua família. Seu sonho de se libertar de uma prisão…

Em nossa profissão, as marcas que ficam são as pessoas, não os motivos que as levaram ao hospital. Muitas delas ficam esquecidas, excluídas e, muitas vezes,  tratadas como doentes pela sociedade.

O evento narrado está intimamente ligado a uma questão de dignidade. A dignidade humana é uma questão constitucional, religiosa, ética e moral. Mais que isso, ela é, ou deveria ser, um valor supremo da sociedade.

É digno a pessoa buscar uma vida social e legal adequada ao seu verdadeiro gênero. Se houvesse a consciência de que esse exercício de dignidade é um direito legitimo, as pessoas na situação desse paciente procurariam orientação e assistência sem receio de censuras e sem colocar em risco sua vida.
-o-

Ângelo Roman Neto
·      Graduação em Medicina (PUC PR - 2009). 
·      Residência em Anestesiologia (Hospital Cajuru – Curitiba PR).
·      Médico Anestesiologista no Hospital Universitário Cajuru e Hospital Vitória em Curitiba.





terça-feira, 29 de agosto de 2017

SERÁ QUE O BRASIL PRECISA DE MÉDICOS CUBANOS?


Será que o Brasil precisa de médicos cubanos?

Angelmar Constantino Roman

Estive em junho de 2017 em Cuba, compondo um grupo de 20 professores médicos brasileiros que atenderam solicitação do Ministério da Saúde do Brasil para contextualizar  médicos cubanos que atuarão no programa Mais Médicos no Brasil, em continuação ao programa iniciado em 2013 e mantido por conta de seus ótimos resultados. O governo federal está sendo pressionado pelas prefeituras para manter os médicos estrangeiros.
Essa experiência me motivou a pensar sobre a pergunta que dá título a este artigo, a partir de uma reflexão sobre a formação médica no Brasil.
Desde a antiguidade, as sociedades humanas buscam atender às demandas de manutenção e recuperação da saúde coletiva. Inicialmente esse processo acontecia de forma não ordenada, respondendo aos grandes surtos e pragas que dizimavam populações e geravam pressões sociais. Com o Mercantilismo no mundo europeu, entre os séculos XVI e XVIII, os Estados nacionais passaram a se preocupar com a saúde da população, com o objetivo de assegurar boas condições produtivas aos trabalhadores, pois isso tinha reflexos diretos na geração de riquezas.
Uma sistematização mais elaborada e madura de uma política pública de saúde, orientada para a população, porém, só vai se iniciar em princípios do século XIX na Alemanha. A morbidade da população passa a ser parametrizada, além da simples contagem de nascimentos e mortes. 
Inspirado no modelo alemão, no início do século XX, o Reino Unido instituiu um sistema de serviços de saúde estruturado em três níveis hierarquizados de atenção. Essa estruturação consolidou-se após a Segunda Guerra com a criação do National Health Service – NHS (Sistema Nacional de Saúde) e mantém-se até hoje: 1º. atenção primária à saúde (APS), com as unidades ambulatoriais, porta de entrada do sistema. Esse nível, quando necessário, encaminha para os níveis: 2º. atenção secundária, com os especialistas e hospitais de médios recursos, e, 3º. atenção terciária, com os hospitais de referência, tipicamente os hospitais-escola. Assim, o cidadão recebe atenção médica, sempre partindo do nível que envolve cuidados de menor densidade tecnológica, a APS, apoiado numa parceria médico-família e num acompanhamento ao longo do tempo. Cada médico cuida de um grupo de famílias. Quando necessário (e só nesses casos), solicita consultoria ou encaminha aos outros níveis de atenção: secundário ou terciário. Ao final do tratamento nesses níveis, o paciente retorna ao seu médico de família.
Ora, esse é o sistema público adotado também no Brasil. Não é bom? Sim, é ótimo!  E por que vemos tantos problemas?
Além das variáveis de ordem especialmente política, pesa a questão da formação médica no Brasil. Ela é ambientada na atenção hospitalar terciária (hospitais universitários), onde os cuidados são episódicos e pouco frequentes, quando deveria focar na atenção primária. É algo como se os veterinários se formassem tratando bichos de zoológicos: ficariam hábeis em tratar raridade e não saberiam cuidar de gato e cachorro.
Três pesquisadores ingleses constataram, em levantamento de 1961, replicado em 2001, que, numa população de 1000 adultos, cerca de 750 referem algum tipo de problema de saúde, mas apenas 250 buscam consultas médicas nos serviços de APS (nível primário). Desses 250, nove são internados e cinco encaminhados a um especialista (nível secundário). Somente um adulto, desse universo de 750 com queixas, precisará chegar a um centro médico universitário (nível terciário). Como se percebe, é na Atenção Primária à Saúde que se localiza a maior extensão do contato com a população. Os outros níveis de atenção cuidam apenas de um pequeno extrato já adoecido da população.
O problema é que as escolas de Medicina no Brasil têm como referência em seu modelo de formação, na melhor das hipóteses, aqueles nove que foram internados e não a maioria da população (os 250 que procuraram a APS). Portanto, mesmo atuando em uma pequena fração da população, os níveis secundário e terciário de atenção ditam, em grande medida, a lógica e as regras da formação nas faculdades de Medicina.
Mudanças mais recentes colocaram o aluno, durante um breve período, nas unidades de atenção primária. Mas o impacto é pequeno, dada a diluição dessa experiência no bombardeio de informações predominantemente de medicina hospitalar.
Essa forma de pensar saúde e doença fica mais comprometida ainda quando submetida à mercantilização, pois dirige os médicos a especializações para atender uma minoria de brasileiros privilegiados socialmente. O resultado é que precisamos trazer médicos cubanos, eles sim disponíveis e preparados para cuidar da saúde da maioria da população brasileira pobre e carente.
Espero que estas reflexões nos ajudem a compreender por que uma ilha, pobre como Cuba, consegue oferecer gratuitamente a seus habitantes uma das melhores assistências médicas do mundo (números da OMS atestam essa afirmação), enquanto um país rico como o Brasil vive esta tragédia cotidiana em que os ricos são ameaçados com excesso de medicina e os pobres, com a ausência de cuidados básicos (números do Ministério da Saúde atestam essa afirmação).
Sim, o Brasil precisaria de médicos cubanos. Infelizmente!

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