OS EXCLUÍDOS
Carlos Alberto de
Assis Viegas
A luz vermelho-alaranjada
do ocaso, refletida nas vidraças quebradas da casa abandonada no centro da
cidade grande, se confunde com labaredas imaginárias. Pela rua estreita, o
fluxo de pedestres diminui e, sob a marquise, que parece querer cair, forma-se
um aglomerado de pessoas que aumenta, à medida que o dia vai escurecendo.
Agora, elas parecem vultos que circulam no mesmo lugar e as chamas dos seus
isqueiros parecem vagalumes, não fosse sua intensa luminosidade. O som de
sirenes ao longe não os incomoda.
Frio outonal
O manto negro da noite
Cai sobre todos nós
Pode-se pensar em dependência/adição como criação da
mente, na maioria das vezes mascarada por comportamentos como excesso de
trabalho, álcool, drogas lícitas e ilícitas, sexo, jogo e várias outras
distrações. Devemos compreender que esses comportamentos são experiências ligadas
não apenas à mente, mas também ao corpo e aos nossos sentidos.
Quando qualquer dos nossos sentidos ou nossa mente
entra em contato com um objeto ou um pensamento, ocorrerá inevitavelmente uma
sensação que pode ser agradável, desagradável ou neutra. Se agradável, buscamos
repetir essa sensação. Se desagradável, procuramos evitá-la. Tanto o desejo pela sensação agradável quanto
a evitação da sensação desagradável têm sua origem nos sentidos e na mente e,
quando descontrolados, passamos a viver o jogo das sensações variando entre a
fissura e a aversão.
Como se sabe, a dependência química pode alterar as
funções orgânicas, modificando circuitos cerebrais que envolvem os
comportamentos de reforço, memória, aprendizado, motivação, atividade motora,
etc. Dessa forma, o consumo de drogas é abordado pela Medicina como fator de
risco potencial para desencadear transtornos mentais e/ou físicos e, pela saúde
pública, como um fator para faltas ao trabalho/escola, bem como para uma maior
demanda por serviços de saúde.
Parece que essa visão equivocada é que orienta o Estado
a pretender fazer a prevenção e tratar “todos os dependentes de drogas” com a
medicalização. Para tanto, procuram classificar os usuários quanto ao consumo como
normal ou doentio, ou tentam quantificar os danos potenciais do consumo. Tudo
isso talvez por não querer enfrentar os problemas sociais e econômicos
envolvidos em tal situação. Entendemos que a efetividade das leis e atitudes proibitivas que insistem em “guerrear contra as drogas” deva ser reavaliada e que a
questão passe a ser abordada com competência, urgência, gentileza e compaixão.
Além dessa relação “policialesca” que o Estado mantém
com a drogadição, a dependência química é frequentemente um tema desconfortável
para os profissionais de saúde, que costumam ter uma imagem negativa dos
dependentes, na maioria das vezes por terem informação insuficiente sobre
dependência e seu tratamento. Essa atitude pode trazer impacto negativo sobre
os cuidados com essas pessoas, as quais também podem reagir negativamente aos
seus cuidadores, fazendo com que o resultado das abordagens seja ineficaz.
Mas existem também outros grupos de excluídos que
chamam menos a nossa atenção. Esses marginalizados, muitos deles vítimas também
da drogadição, podem ter sido vítimas de experiências cruéis por não terem
correspondido aos anseios e expectativas projetados pela família e/ou sociedade,
cada vez mais focadas no lucro e centradas no indivíduo, ignorando o contexto
coletivo do qual ele faz parte.
Se, desde que nascemos, tentam nos impor papéis que
podem não ter nada a ver com nossos desejos e possibilidades, é natural que nos
desviemos. E, quando nos desviamos a ponto de parecermos ameaçadores, pensam: “Devem
ser punidos!” A forma de punição mais habitual é a exclusão, via discriminação,
que nos causa profundo sofrimento psicológico e, muitas vezes físico,
decorrente de atitudes e pensamentos nocivos que nos julgam, nos criticam, nos
dizem que não somos bons, que não somos louváveis, enfim, que devemos nos
odiar.
Assim, nossa sociedade, cada vez mais líquida em suas
relações, vai criando excluídos de diversos matizes, muitas vezes considerados
lixos sociais. Entendemos que não é com canhões de jato d’água, cães
farejadores nos calcanhares, camisas de força, jaulas ou fármacos que esses problemas
serão equacionados.
Sim, cai sobre todos nós, especialmente sobre nós
médicos, o pesado manto da responsabilidade de lidar com essas questões.
Reconhecendo os limites da Medicina, creio que, para amenizar o flagelo social
trazido por essas exclusões, a prescrição de medicamentos e de medidas
higienizadoras deve ser sempre precedida de um questionamento sobre os valores de
nossa sociedade.
-o-
Carlos Alberto de Assis Viegas
· Graduação em Medicina pela UnB.
· Mestrado em Pneumologia pela UFRGS.
· Doutorado em Fisiopatologia
Respiratória pela Universitat de Barcelona.
· Pós-doutorado pela University of
Pennsylvania.
· Professor Associado da UnB.
· Seguidor do Shin Budismo e aprendiz
de haijin (haicai).
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