PRIVILÉGIO
Anderson Roman
Em uma consulta recente, no meu
consultório utilizou-se a expressão “foi um privilégio conhecê-lo”. Nessa
situação, e certamente no seu uso mais frequente, a expressão “privilégio” é
utilizada em sentido positivo, para valorizar o interlocutor. Mas é positiva
apenas na perspectiva individual, nunca na coletiva. Embora, nesses casos, não
prejudique ninguém, o privilegiado obtém a vantagem com a "exclusão de
outros".
Segundo o dicionário
"Aurélio", privilégio é "Direito
ou vantagem concedido a alguém, com exclusão de outros. Bem ou coisa a que
poucos têm acesso. Permissão especial. Imunidade, prerrogativa. Qualidade ou
característica especial, geralmente positiva.”
Me lembrei dessa consulta ao ver na
imprensa e nas redes sociais uma polêmica sobre acúmulo de privilégios de um
casal de magistrados.
Em postagem recente em rede social,
um religioso comentou sobre sua vivência oferecendo conforto religioso a
internados em um hospital público. Comparou as condições desses assistidos com
os privilégios da magistratura brasileira. O religioso, em seu trabalho
missionário, vê bem próximas as dores de muitos enquanto escuta no noticiário sobre
o privilégio de alguns.
Ao entrar em um pronto socorro de
hospital público, é quase padrão o cenário de excesso de pacientes e precária
estrutura. Essa situação é agravada, não podemos ignorar, porque uma porção dos
recursos para os investimentos necessários está cobrindo privilégio de alguém.
Nesse ambiente, vemos dor,
sofrimento, desespero, morte. Porém, ninguém, ainda que seja a vítima, se sente
com mais direito do que o outro. A dor e o sofrimento deixam todos igualmente
carentes.
A dor do outro inibe a pretensão de
privilégio, pois todos entendem o que é a dor. Mas, por uma decisão técnica, aqueles
com mais dor e maior risco de morte são atendidos primeiro. Se existe algum
privilégio é poder participar desse movimento coletivo de oferecer cuidado em
que se vê dedicação, carinho, empatia, esforço, disposição, luta, garra,
solidariedade.
Longe de julgar os que julgam, acho que
nosso olhar deveria se dirigir àqueles que foram excluídos para que fossem
garantidos os privilégios. Quando qualquer um de nós busca um privilégio, o
pressuposto básico é que alguém será deixado para trás. Será que, se tivéssemos
um olhar para aqueles que, literalmente, vamos deixar para trás, ainda assim
manteríamos nosso desejo de privilégio?
Quem defende para si um privilégio
que custa muito caro para um país com tantas carências básicas não estaria com
uma venda nos olhos? Será que ficamos todos nós cegos diante de uma realidade
que desconhecemos e passamos a defender como direito o que é um privilégio que
se mantém com a exclusão do outro?
Quem não passou fome, pode entender o que é não ter o que comer? Quem nunca dormiu em uma precária moradia de um cômodo, sabe o real valor de um "auxílio-moradia"?
Quem nunca viu a mãe ser abusada ou
o pai agredido pela violência diuturna entende o que é falta de segurança? Quem
estudou em escolas limpas, bem equipadas, com professores presentes e
satisfeitos, sabe o que é precariedade da educação? Quem ganha acima da média tem condição de reconhecer o valor de uma bolsa família?
A Medicina permite ver coisas além
do cotidiano. Ver a dor, o sofrimento, a morte, mas também permite ver a
melhora, o alívio, a cura, o nascer, o transplantar, o superar. Penso, porém,
que isso não é um “privilégio” de quem atua na área médica. Para reconhecer a
complexidade constitutiva da vida, sensibilizar-se com aqueles que são vítimas
de um sistema social injusto e indignar-se com as benesses obtidas com o
sacrifício de quem mais necessita, basta abrir os olhos, o coração e a mente.
Creio que aqui pode-se,
singelamente, dividir a humanidade em dois grupos: os humanistas e os individualistas,
sem classificá-los como certos ou
errados. Os médicos (e os magistrados) humanistas terão mais capacidade de
enxergar os flagelos da desigualdade? Poderão entender como é tosco existir
privilégios em uma sociedade com tantos excluídos? Os médicos (e os
magistrados) individualistas, longe de serem maus médicos (ou maus magistrados),
por terem um foco na pessoa desligada de seu contexto, terão uma visão mais
objetiva do mundo?
Muitos colegas idealistas, como eu,
enxergam a Medicina e a solidariedade como parte de um mesmo. Reconheço que
muitas vezes nos sentimos sós.
-o-
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