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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

PRIVILÉGIO



PRIVILÉGIO
Anderson Roman

Em uma consulta recente, no meu consultório utilizou-se a expressão “foi um privilégio conhecê-lo”. Nessa situação, e certamente no seu uso mais frequente, a expressão “privilégio” é utilizada em sentido positivo, para valorizar o interlocutor. Mas é positiva apenas na perspectiva individual, nunca na coletiva. Embora, nesses casos, não prejudique ninguém, o privilegiado obtém a vantagem com a "exclusão de outros".

Segundo o dicionário "Aurélio", privilégio é "Direito ou vantagem concedido a alguém, com exclusão de outros. Bem ou coisa a que poucos têm acesso. Permissão especial. Imunidade, prerrogativa. Qualidade ou característica especial, geralmente positiva.”

Me lembrei dessa consulta ao ver na imprensa e nas redes sociais uma polêmica sobre acúmulo de privilégios de um casal de magistrados.

Em postagem recente em rede social, um religioso comentou sobre sua vivência oferecendo conforto religioso a internados em um hospital público. Comparou as condições desses assistidos com os privilégios da magistratura brasileira. O religioso, em seu trabalho missionário, vê bem próximas as dores de muitos enquanto escuta no noticiário sobre o privilégio de alguns.

Ao entrar em um pronto socorro de hospital público, é quase padrão o cenário de excesso de pacientes e precária estrutura. Essa situação é agravada, não podemos ignorar, porque uma porção dos recursos para os investimentos necessários está cobrindo privilégio de  alguém.

Nesse ambiente, vemos dor, sofrimento, desespero, morte. Porém, ninguém, ainda que seja a vítima, se sente com mais direito do que o outro. A dor e o sofrimento deixam todos igualmente carentes.

A dor do outro inibe a pretensão de privilégio, pois todos entendem o que é a dor. Mas, por uma decisão técnica, aqueles com mais dor e maior risco de morte são atendidos primeiro. Se existe algum privilégio é poder participar desse movimento coletivo de oferecer cuidado em que se vê dedicação, carinho, empatia, esforço, disposição, luta, garra, solidariedade.

Longe de julgar os que julgam, acho que nosso olhar deveria se dirigir àqueles que foram excluídos para que fossem garantidos os privilégios. Quando qualquer um de nós busca um privilégio, o pressuposto básico é que alguém será deixado para trás. Será que, se tivéssemos um olhar para aqueles que, literalmente, vamos deixar para trás, ainda assim manteríamos nosso desejo de privilégio?

Quem defende para si um privilégio que custa muito caro para um país com tantas carências básicas não estaria com uma venda nos olhos? Será que ficamos todos nós cegos diante de uma realidade que desconhecemos e passamos a defender como direito o que é um privilégio que se mantém com a exclusão do outro?

Quem não passou fome, pode entender o que é não ter o que comer? Quem nunca dormiu em uma precária moradia de um cômodo, sabe o real valor de um "auxílio-moradia"?

Quem nunca viu a mãe ser abusada ou o pai agredido pela violência diuturna entende o que é falta de segurança? Quem estudou em escolas limpas, bem equipadas, com professores presentes e satisfeitos, sabe o que é precariedade da educação? Quem ganha acima da média tem condição de reconhecer o valor de uma bolsa família?

A Medicina permite ver coisas além do cotidiano. Ver a dor, o sofrimento, a morte, mas também permite ver a melhora, o alívio, a cura, o nascer, o transplantar, o superar. Penso, porém, que isso não é um “privilégio” de quem atua na área médica. Para reconhecer a complexidade constitutiva da vida, sensibilizar-se com aqueles que são vítimas de um sistema social injusto e indignar-se com as benesses obtidas com o sacrifício de quem mais necessita, basta abrir os olhos, o coração e a mente.

Creio que aqui pode-se, singelamente, dividir a humanidade em dois  grupos: os humanistas e os individualistas, sem classificá-los  como certos ou errados. Os médicos (e os magistrados) humanistas terão mais capacidade de enxergar os flagelos da desigualdade? Poderão entender como é tosco existir privilégios em uma sociedade com tantos excluídos? Os médicos (e os magistrados) individualistas, longe de serem maus médicos (ou maus magistrados), por terem um foco na pessoa desligada de seu contexto, terão uma visão mais objetiva do mundo?

Muitos colegas idealistas, como eu, enxergam a Medicina e a solidariedade como parte de um mesmo. Reconheço que muitas vezes nos sentimos sós.

-o-





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