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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 21 de outubro de 2016

TERRITÓRIO: DIGA-ME POR ONDE ANDAS E...




Renata Almeida

Este artigo vem problematizar questões pertinentes aos profissionais que constroem o Sistema Único de Saúde e a política de atenção básica à saúde. Mesmo que o SUS esteja sob forte crise e risco iminente de desmonte, achamos pertinente seguir com esta escrita como forma de resistência e fortalecimento de uma prática médica mais humana e engajada na sustentação de direitos à saúde e aos cuidados médicos.

O trabalho em uma comunidade supõe a “leitura” do território. Milton Santos, geógrafo urbano brasileiro, nos ensinou que território compreende o chão e mais a população, sua história e suas relações. É o espaço coletivo onde a vida de um povo acontece. Os territórios são vivos, possuem características próprias e cultura diferenciada em cada localidade. Neles, os laços afetivos constroem redes de sobrevivência.

Reconhecer quais são essas relações que permeiam o território é essencial para uma intervenção exitosa.  O mapeamento afetivo de um território permite que os profissionais que ali circulam tenham uma rede onde apoiar seus planos de ação. É necessário que o médico possa circular pela comunidade, conversar, estabelecer relações com quem ali trabalha e vive.

Muitas vezes, temos pacientes cuja história de vida é puro desamparo e não sabemos de onde tiram forças para seguir adiante. Diante dessas histórias, nos perguntamos: onde essa pessoa se segura? Onde está o laço afetivo que a mantém viva? O que faz com que essa pessoa não desista de viver? Onde esses sujeitos se reconhecem como cidadãos? Onde eles encontram apoio? Será na igreja? Onde o valor da vida se encontra? Nos amigos de bar, na vizinha da esquina, ou no seu cachorro? 

Jorge Broide, psicanalista que estuda a transferência em situações de vulnerabilidade social, nos aponta a necessidade de reconhecer onde os sujeitos têm os seus pontos de ancoragem no território. Pontos de ancoragem são os nós dessa rede afetiva e territorial onde o sujeito encontra um lugar possível de sustentação para sua vida.  Eles devem ser mapeados e reconhecidos pelas equipes e pelo médico que acompanham esse paciente.
Mas porque estamos falando de território, pontos de ancoragem e transferência? O que o trabalho médico tem a ver com tudo isso

Como é possível, por exemplo, construir uma intervenção com um idoso diabético insulinodependente que vive só, sem familiares? Quem são as pessoas com quem ele conta no seu dia a dia? Será a adolescente filha da vizinha que o acompanha à farmácia? Será a dona da quitanda na outra esquina que sabe o que ele come? Basta a prescrição da dose correta de insulina e sua distribuição no posto para o sucesso da intervenção médica?

Escutar a história dos pacientes e compreender como circulam na vida, nos ajuda a construir um tratamento mais eficaz, mais próximo da realidade desses sujeitos. Circular pelo território nos permite fortalecer laços de fraternidade e cooperação entre aqueles que ali se encontram. Reconhecer quem são os pontos de ancoragem de nossos pacientes e, nesse movimento, reconhecê-los como partícipes da intervenção, pode mudar prognósticos. Acompanhar os colegas de equipe, assistentes sociais, psicólogos, enfermeiros e agentes de saúde em visitas domiciliares é essencial para que o saber médico se presentifique na vida da comunidade de forma capilar e transformadora.

Se o território é vivo e nele pulsam as relações humanas, como poderia um médico ali intervir sem por ele andar, sem nele se interrogar, sem por ele ser transformado? O limite do nosso ofício aqui se encontra com o limite de outras ciências que podem muito nos orientar no chão do território: sociologia, geografia urbana, antropologia, psicanálise e história. E, no encontro desses saberes, é possível a costura da vida e das intervenções.

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Renata Almeida
  Formada em Medicina pela UFPR (1988).
  Especialista em Homeopatia pela Associação Médica Homeopática Brasileira.
  Psicanalista. Membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (APPOA) e do Instituto APPOA.
  Coordenadora do Projeto Casa dos Cata-Ventos em Porto Alegre.