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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A PÍLULA DA FELICIDADE NÃO EXISTE. AINDA BEM...




Tereza Cristina Gonçalves

Não há nada de errado com você que não possa ser curado com um pouco de Prozac e um taco de polo”.  Woody Allen no filme Um Misterioso Assassinato em Manhattan (1993)

         No início da minha prática psiquiátrica nos anos 90, não pude deixar de celebrar o aparecimento no mercado psicofarmacológico, poucos anos antes, da fluoxetina (Prozac), antidepressivo com novo mecanismo de ação. Não por ser mais eficaz, mas por ter um número muito menor de efeitos colaterais que seus pares comercializados desde o final da década de 50.

         Minha primeira paciente dos anos de Residência Médica foi uma professora de 40 anos, aposentada por depressão com crises de pânico quando em sala de aula. Havia realizado terapias psicológicas por anos a fio sem sucesso. Não conseguia tomar a medicação por conta dos efeitos colaterais e vivia reclusa. Ela foi tão beneficiada com a fluoxetina, que o foco do seu tratamento mudou para a elaboração de novos planos de vida, após ter já desistido dela. Além dessa professora, milhões de pessoas foram beneficiadas por esse medicamento.
        
Mas, diferente dos contos de fada, que acabam no casamento e na frase genérica “foram felizes para sempre”, o passar dos anos mostrou que nem tudo vai tão bem. A meu ver, devido a uma soma de fatores: ânsia da indústria farmacêutica pelo lucro indiscriminado; vaidade médica e incapacidade de reconhecer as dificuldades e limites da sua prática; necessidade – Freud decerto explicaria – dos psiquiatras de se reconhecerem como “médicos de verdade” que tratam de “doenças reais”; uma sociedade cada vez mais focada na produtividade a qualquer custo; falta de tempo para qualquer elaboração psíquica de fenômenos naturais e comuns que causem sofrimento. Tudo isso criou um certo viés na história que deveria ter final feliz: temos hoje uma epidemia de “depressão” e como  “solução” simplificadora, a medicação.

         Alguns trabalhos mostram números alarmantes: mais de 2/3 das pessoas que tomam antidepressivos podem nem sofrer de depressão. Até aí, a questão não é tão grave, pois antidepressivos são usados hoje em diferentes distúrbios psiquiátricos e podem ser benéficos em casos de transtorno obsessivo compulsivo, transtorno do pânico e ansiedade. Mas como não se assustar ao saber que 38% de pessoas que tomam antidepressivos não têm NENHUM transtorno mental?

         Segundo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), desde 1998 a prescrição de antidepressivos triplicou nos países mais ricos. O número de prescrições de fluoxetina nos EUA subiu de 2,5 milhões em 1988 para 33 milhões em 2002. Esses números hoje certamente são maiores, mas a fluoxetina não reina absoluta. Outras medicações foram lançadas no mercado e dividem o estrelato farmacológico contra a “depressão”.

Vivemos um paradoxo de gente medicada sem razão clínica e gente que se beneficiaria, mas que tem o acesso a tratamento sistematicamente negado, seja pela incapacidade de realização de diagnóstico pela equipe de saúde, seja por razões ideológicas, alheias à boa prática clínica, que consideram toda medicação psicotrópica como “uma forma de violência e normatização do indivíduo a serviço da sociedade opressora”.

          Este escrito não tem a menor intenção de demonizar o uso de antidepressivos.  A doença existe, embora o diagnóstico seja apenas clínico (não existem exames complementares). E as pessoas de fato se beneficiam com os tratamentos. Não há, porém, por que vender a ilusão de que podemos oferecer a felicidade em pílulas. Medicar indiscriminadamente sonega aos pacientes o reconhecimento de outros tipos de ajuda, que podem ser eficazes para amenizar seu sofrimento.

         Torço para que nós, médicos, tenhamos sempre capacidade para medicar somente quando realmente for necessário; discernimento para  aceitar que todos nós experimentamos momentos de tristeza, ansiedade, dúvidas, fragilidades e inquietações; e sensibilidade para reconhecer que ter esses sentimentos não significa que somos portadores de transtorno mental, apenas que somos seres humanos. E essa aventura vale a pena...

-o-

Tereza Cristina Gonçalves

  • Médica formada pela FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) – 1989.
  • Residência Médica em Psiquiatria no Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas FMUSP 1990 a 1992.
  • Pós graduação lato senso em psicanálise pelo Departamento de Psicanálise,  Instituto Sedes Sapientiae, 2002 a 2005.