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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 27 de novembro de 2015

FAZ BEM OU MAL DOUTOR?


Anderson Roman    

Uma pergunta muito comum que ouço no consultório é se eu, como médico, acredito na eficiência de um determinado procedimento ou de um medicamento específico.

Uma das últimas vezes em que recebi essa pergunta foi de uma senhora idosa, que me relatou o seguinte: embora estivesse em bom estado de saúde, teve uma dor no peito. Achou por bem consultar seu cardiologista. Mesmo que fosse baixo o risco de ocorrer algo grave com a senhora,o cardiologista, preocupado, solicitou um exame ultramoderno que detecta quanto de cálcio temos nas coronárias.

Esse exame, chamado escore de cálcio, apresentou nível elevado de cálcio nas coronárias. Em geral, isso indica a possibilidade da existência de alguma lesão nas coronárias e é uma informação importante que deve ser considerada juntamente com outras informações sobre o estado geral do examinado.

O próximo passo foi a solicitação de um cateterismo cardíaco. A senhora estava tão bem que se recusou a fazer esse último exame. E continua muito bem. Foi a partir dessa experiência que ela me perguntou, referindo-se aos exames solicitados a ela, como nós médicos sabemos se algo funciona ou não. A resposta é complicada...

A grande maioria das informações sobre novos medicamentos e exames vem de estudos científicos patrocinados por seus fabricantes. E, claro, eles têm um enorme interesse em que seu produto seja bom e venda bem. Afinal, há uma grande soma de dinheiro envolvida no desenvolvimento desses produtos e uma grande expectativa de lucro por parte dos acionistas dessas empresas.

Para saber se tudo está certo com esses estudos, há agências especializadas na análise de pesquisas e na interpretação de seus resultados. A mais importante em todo o mundo é o FDA (U.S. Food and Drug Administration ), órgão do governo dos Estados Unidos, cuja função é controlar  alimentos e medicamentos por meio de diversos testes e pesquisas. Seus pareceres são usados no mundo todo. Nossa agência aqui no Brasil é a ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária).

Sobre esse tema, há detalhes científicos bem complexos nos quais não vou entrar aqui, mas recentemente impactou muito minha opinião um estudo  publicado em abril deste ano e disponível em www.bmj.com/content/350/bmj.h2613.

Chang e colaboradores (EUA) mostraram que muitos dos equipamentos cardiológicos, cujo uso é de alto risco para os pacientes, não têm os seus estudos publicados e disponíveis para leitura. E pior ainda: dos estudos que são publicados, muitos apresentam dados diferentes daqueles que foram submetidos para a aprovação ao FDA. No seu conjunto, isso sugere que há falsidade no que é apresentado sobre alguns equipamentos.

E como saber se um estudo é confiável? Como conhecer os riscos reais de um equipamento?  Que resposta eu poderia dar para aquela senhora?

Também neste ano, revistas médicas internacionais de alta relevância publicaram uma retirada de publicações científicas de um pesquisador, Dr.Ranjit  Kumar Chandra, que desde a década de 80 estudava fórmulas nutricionais pediátricas e alergias. Uma investigação longa e detalhada mostrou que algumas de suas publicações eram possíveis fraudes. Seus achados, que influenciaram a alimentação infantil e o lucro de grandes empresas internacionais, podem ter sido forjados para beneficiar a venda desses produtos.

A resposta que dei para a senhora foi que nós, médicos, seguimos as orientações dos órgãos regulatórios, com um bom grau de ceticismo. Em geral, tudo que é muito novo e com custo elevado precisa dormir um pouco nas prateleiras para que saibamos de sua segurança.


-o-


sexta-feira, 13 de novembro de 2015

BRIGADEIRO PODE!





Brigadeiro pode!
Suely Keiko Kohara

Ter um filho é o maior exercício de amor incondicional. Mas, embora saibamos que um pouco de dor e sofrimento são ingredientes necessários para o seu amadurecimento, nós (mães e pais) gostaríamos de livrar nossos filhos de todos os males.

Na busca por evitar que adoeçam, oferecemos alimentos saudáveis, incentivamos a prática de atividade física, levamos ao pediatra regularmente e damos as vacinas necessárias. Práticas certamente muito eficientes. Alguns pais, porém, excedem esses cuidados básicos e querem, por exemplo, dar suplementação de vitaminas ou pedir exames, mesmo quando não são necessários.
Sobre exames, nós, pediatras, muitas vezes somos forçados a solicitá-los apenas para tranquilizar os pais, que temem que seu filho tenha alguma doença ainda não revelada. Já ouvi de algumas mães que trocaram de médico porque o anterior não pedia exames...
Mas qual o problema de se fazerem exames? Não é bom saber se existe algo que o médico não está percebendo? Existe alguma contraindicação em se fazerem exames indiscriminadamente?
Existe sim!
O risco de um deles vir alterado, ou seja, de dar “positivo”, mesmo na ausência de doenças, existe e aumenta quanto maior o número de exames realizados. Sem falar dos exames de imagem, que podem revelar os “incidentalomas”, que são “achados” sem repercussão clínica (como alguns cistos no rim, por exemplo). Ou seja, a pessoa pode passar a vida toda com esses cistos mostrados no exame sem ter qualquer problema. E além dos alarmes e preocupação desnecessária com alguns resultados, é preciso lembrar que exames como tomografia expõem o indivíduo a uma carga de radiação até 700 vezes maior que a de uma radiografia comum, a qual, já se sabe, não é totalmente inócua.
Entendo a preocupação dos pais. Eles insistem nos exames, com medo de uma doença silenciosa que poderia ser evitada o quanto antes. Uma dessas doenças é o diabetes, pois sabemos que metade das pessoas com diabetes do tipo 2 não sabe que tem a doença. Isso é verdade para adultos, mas não para crianças. O diabetes que mais afeta as crianças e adolescentes é o do tipo 1, que causa muita sede, urina em excesso, emagrecimento e fraqueza. Elas podem ter diabetes do tipo 2 se estiverem acima do peso. Portanto, só se deve fazer exame de glicose se a criança estiver acima do peso ou com algum dos sintomas citados.
O exame, bem indicado, é uma ferramenta complementar de diagnóstico muito importante. Seu resultado, porém, não deveria ser a única informação a orientar a decisão médica. O foco exclusivo nos resultados de um exame, sem considerar o estado geral do examinado, pode levar a diagnósticos equivocados.
Foi o que aconteceu com um menino que atendi há alguns meses em meu consultório. Ele tinha recebido um diagnóstico errôneo de diabetes. Mesmo sem ter qualquer sintoma, baseado apenas em um exame alterado, o menino foi orientado a não comer mais qualquer tipo de doce.  Emagreceu muito, ficou triste, a família deixou de frequentar as reuniões festivas para que ele não passasse vontade, até que um parente sugeriu que buscassem uma segunda opinião.
O exame realmente apresentava uma dosagem de glicose um pouco acima do normal, mas o garoto não tinha sintomas de diabetes! Expliquei para os pais que costumo tratar o paciente e não os exames, e liberei a dieta. Nunca vou me esquecer do sorriso no rosto daquele menino quando soube que ia poder comer brigadeiro de novo! Um novo exame, feito algum tempo depois da liberação da dieta, mostrou níveis normais de glicose.
Fico pensando em quantos pacientes são encaminhados a especialistas por causa de exames alterados e que muitas vezes não eram necessários. E por causa disso, são levados e fazer mais e mais exames, para tentar descobrir o que levou a essa alteração, até se ter a certeza de que era apenas um exame anormal numa pessoa normal.

Suely Keiko Kohara   

- Graduação em Medicina (UFPR - 1986).
- Residência em Pediatria e Endocrinologia Pediátrica (HC-UFPR).
- Mestrado em Saúde da Criança e do Adolescente (HC-UFPR)
- Fellow em Endocrinologia Pediátrica (Sheffield Children’s Hospital - Inglaterra).
- Professora do Curso de Medicina da Universidade da Região de Joinville.

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