Pesquisar este blog

Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

PREVENÇÃO DO CÂNCER DE MAMA TEM LIMITE




Charles Tesser – UFSC

Quando saí da residência (1994), fui trabalhar como clínico num vilarejo rural. Pratiquei o que tinha aprendido: prevenção é bom! Orientava o autoexame de mamas, colhia papanicolau, solicitava mamografias, media a pressão, fazia puericultura, etc. Alguns exames eu tinha aprendido a não pedir, como sangue, urina ou fezes para crianças normais. Mas não sabia bem por quê.

Depois de 15 anos de clínica, já professor num curso de Medicina, conheci a prevenção quaternária, cujo objetivo é proteger o paciente da intervenção médica inapropriada e da medicalização desnecessária. Acabei publicando, com um colega, um artigo sobre o tema1.

As crenças (e  interesses de setores que ganham dinheiro com isso) são fortes com relação à prevenção. Hábitos de vida saudáveis parecem pouco para prevenir, por exemplo, câncer de mama.

Há três anos, orientei um aluno que fez um estudo sobre mamografia preventiva para câncer de mama. Fiquei espantado com o resultado: parecia não valer a pena fazer mamografia de rotina! Mas os governos, as instituições de referência e as sociedades de especialistas não mudaram substancialmente as recomendações.

No cuidado ao adoecido, devo e preciso, como médico, acreditar nas teorias e no saber da Medicina. Posso ser mais interventor quando a dor, a doença e o sofrimento pressionam por isso. Porém, nas ações preventivas não há dor, limitação ou sofrimento pressionando por ação. A pressão é a do medo da doença grave, associada à crença no poder da tecnologia e da Medicina.

Mas há danos previsíveis e imprevisíveis: falsos positivos, falsos negativos, complicações, efeitos adversos, sobrediagnósticos (quando um diagnóstico é correto, mas a doença não teria repercussão na vida da pessoa). Há um grupo muito grande de pessoas expostas aos danos potenciais das ações preventivas. Em contrapartida, apenas um grupo pequeno adoecerá no futuro e pode se beneficiar delas.

Esse balanço entre benefícios e danos só pode ser percebido por estudos de alta qualidade que produzem evidências idôneas sobre os resultados finais das ações preventivas em ensaios clínicos (e em populações). Ou seja, na prevenção em que usam exames ou produtos químicos ou biológicos, há riscos de danos e temos que desconfiar das teorias médicas, suas tecnologias e do bom senso que diz: prevenção é bom. Temos que ser céticos, verificar os estudos e exigir resultados amplamente benéficos com nulos ou mínimos danos.

Os melhores dentre esses estudos mostram resultados benéficos da mamografia muito pequenos: a cada 2 mil mulheres rastreadas por dez anos, apenas uma terá sua vida salva pelo rastreamento, três a dez serão sobrediagnosticadas e sobretratadas; e 200 experimentarão importante estresse psicológico, incluindo ansiedade e incerteza devido a falsos positivos, entre outros danos: aumento de mortalidade por doença cardiovascular; indução de câncer de pulmão; dor crônica em metade das sobrediagnosticadas; sem redução de mastectomias ou da incidência de formas mais graves2. Nem de longe isso se parece com “nulos ou mínimos danos”.

Como não são identificáveis as inocentes lesadas, pois não há como diferenciar as sobrediagnosticadas das beneficiadas, atualmente as prejudicadas (todas as sobretratadas) não reclamam, não exigem reparos. Ao contrário, são duplamente enganadas: acreditam que suas vidas foram salvas por tratamentos que só lhes foram lesivos. Trágico.

O câncer de mama é um exemplo dos limites da medicina preventiva. Após décadas recomendando mamografias, talvez tenhamos mais prejudicado que ajudado com tantos exames, ou pelo menos há sérias dúvidas sobre isso. (O autoexame das mamas também não se recomenda, pois gera mais danos que benefícios).

As mulheres não precisam se preocupar com câncer de mama, como não se preocupam com muitas outras doenças para as quais não se têm exames específicos para diagnose precoce. Até que provas substanciais mostrem mudança na balança danos x benefícios, por precaução e na dúvida2, hoje, não se deve recomendar rastreamento mamográfico.

Parece-me que a conduta adequada é melhorar a diagnose e agilizar o tratamento das sintomáticas. Para prevenir: reduzir o sedentarismo, tabaco e estresse, evitar agrotóxicos nas comidas e as mães devem amamentar bastante (os bebês agradecem). Como em meios altamente adversos (Brasil), aconselhamentos individuais têm pouco sucesso, cabe lutar por políticas públicas focadas nas condições sociais que afetam a população e tirar um pouco o foco da intervenção sobre os indivíduos3.

-o-


Charles Tesser

·      Professor do Departamento de Saúde Pública e do Programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da UFSC
·      Médico com residência em Medicina Preventiva e Social, Mestrado e Doutorado  em Saúde Coletiva pela UNICAMP
·      Pós-Doutorado no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.