Charles Tesser – UFSC
Quando saí da residência (1994), fui trabalhar como
clínico num vilarejo rural. Pratiquei o que tinha aprendido: prevenção é bom! Orientava
o autoexame de mamas, colhia papanicolau, solicitava mamografias, media a
pressão, fazia puericultura, etc. Alguns exames eu tinha aprendido a não pedir,
como sangue, urina ou fezes para crianças normais. Mas não sabia bem por quê.
Depois de 15
anos de clínica, já professor num curso de Medicina, conheci a prevenção
quaternária, cujo objetivo é proteger o paciente da intervenção médica
inapropriada e da medicalização desnecessária. Acabei publicando, com um
colega, um artigo sobre o tema1.
As crenças (e
interesses de setores que ganham dinheiro com isso) são fortes com
relação à prevenção. Hábitos de vida saudáveis parecem pouco para prevenir, por
exemplo, câncer de mama.
Há três anos, orientei um aluno que fez um estudo sobre mamografia
preventiva para câncer de mama. Fiquei espantado com o resultado: parecia não
valer a pena fazer mamografia de rotina! Mas os governos, as instituições de
referência e as sociedades de especialistas não mudaram substancialmente as
recomendações.
No cuidado ao adoecido, devo e preciso, como médico, acreditar
nas teorias e no saber da Medicina. Posso ser mais
interventor quando a dor, a doença e o sofrimento pressionam por isso. Porém, nas
ações preventivas não há dor, limitação ou sofrimento pressionando por ação. A
pressão é a do medo da doença grave, associada à
crença no poder da tecnologia e da Medicina.
Mas há danos previsíveis e imprevisíveis: falsos
positivos, falsos negativos, complicações, efeitos adversos, sobrediagnósticos
(quando um diagnóstico é correto, mas a doença não teria repercussão na vida da pessoa). Há um grupo muito
grande de pessoas expostas aos danos potenciais das ações preventivas. Em
contrapartida, apenas um grupo pequeno adoecerá no futuro e pode se beneficiar delas.
Esse balanço entre benefícios e danos só pode ser
percebido por estudos de alta qualidade que produzem evidências idôneas sobre
os resultados finais das ações preventivas em ensaios clínicos (e em populações).
Ou seja, na prevenção em que usam exames ou produtos químicos ou biológicos, há
riscos de danos e temos que desconfiar das teorias médicas, suas tecnologias e
do bom senso que diz: prevenção é bom. Temos que ser céticos, verificar os estudos
e exigir resultados amplamente benéficos com nulos ou mínimos danos.
Os melhores dentre esses estudos mostram resultados benéficos
da mamografia muito pequenos: a cada 2 mil mulheres
rastreadas por dez anos, apenas uma terá sua vida salva pelo rastreamento, três
a dez serão sobrediagnosticadas e sobretratadas; e 200 experimentarão
importante estresse psicológico, incluindo ansiedade e incerteza devido a
falsos positivos, entre outros danos: aumento de mortalidade por doença
cardiovascular; indução de câncer de pulmão; dor crônica em metade das sobrediagnosticadas;
sem redução de mastectomias ou da incidência de formas mais graves2. Nem de longe isso se parece
com “nulos ou mínimos danos”.
Como não são identificáveis as inocentes lesadas, pois não há como
diferenciar as sobrediagnosticadas das beneficiadas, atualmente as prejudicadas
(todas as sobretratadas) não reclamam, não exigem reparos. Ao contrário, são
duplamente enganadas: acreditam que suas vidas foram salvas por tratamentos que
só lhes foram lesivos. Trágico.
O câncer de mama é um exemplo dos limites da medicina preventiva.
Após décadas recomendando mamografias, talvez tenhamos mais prejudicado que
ajudado com tantos exames, ou pelo menos há sérias dúvidas sobre isso. (O autoexame das mamas também não se recomenda, pois gera mais danos que
benefícios).
As mulheres não precisam se preocupar com câncer de mama, como não
se preocupam com muitas outras doenças para as quais não se têm exames específicos
para diagnose precoce. Até que provas substanciais mostrem mudança na balança
danos x benefícios, por precaução e
na dúvida2, hoje, não se deve recomendar rastreamento mamográfico.
Parece-me que a conduta adequada é melhorar a diagnose e agilizar
o tratamento das sintomáticas. Para prevenir: reduzir o sedentarismo, tabaco e
estresse, evitar agrotóxicos nas comidas e as mães devem amamentar bastante (os bebês agradecem). Como em meios altamente adversos (Brasil),
aconselhamentos individuais têm pouco sucesso, cabe lutar
por políticas públicas focadas nas condições sociais
que afetam a população e tirar um pouco o foco da intervenção sobre os
indivíduos3.
-o-
Charles Tesser
· Professor do
Departamento de Saúde Pública e do Programa de pós-graduação em Saúde Coletiva da
UFSC
· Médico com residência em
Medicina Preventiva e Social, Mestrado e Doutorado em Saúde Coletiva pela UNICAMP
· Pós-Doutorado no Centro
de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra.