ESCOLHAS
Ângelo Roman Neto
Em uma maca estacionada no corredor do Centro
Cirúrgico, estava um paciente aguardando sua cirurgia. Eu estava de plantão
nessa noite. Como de praxe, nós, anestesiologistas, conversamos com os pacientes
antes dos procedimentos cirúrgicos e, sempre que possível, também em cirurgias
de emergência, que era o caso daquele jovem.
Antes de encontrá-lo, verifiquei seus dados e vi
que o procedimento seria o de uma drenagem de hematoma em bolsa escrotal. Fui
ao encontro dele.
O rapaz, muito educado e tranquilo, respondeu às
minhas perguntas naturalmente. Perguntei sua idade, peso, se tomava algum
medicamento, enfim, uma anamnese prévia ao procedimento. Pedi que contasse o
que havia ocorrido e como havia surgido o hematoma, se tinha sofrido um trauma
no local machucado, como uma pancada. Ele respondeu que não, e apresentou uma justificativa
surpreendente.
D.H.S. era casado, pai de uma filha de 3 anos e
queria se tornar uma mulher. Sua esposa o apoiava, inclusive. Tomado por seu desejo,
comprou livros de cirurgia e anatomia, instrumentos cirúrgicos, e retirou os
próprios testículos. Queria que seu corpo parasse de produzir testosterona,
hormônio masculino produzido pelos testículos, para se tornar mulher. Seu
procedimento teve sucesso e também complicações. Após um sangramento no local,
formou-se um hematoma. Daí, precisou ir ao hospital.
Encaminhei o
paciente à sala de cirurgia. Antes de colocá-lo sob anestesia geral, ele ainda
me perguntou se existia a possibilidade de o pênis ser retirado na mesma operação.
Expliquei que não seria possível, pois, para tal intervenção, era necessário
que se cumprissem requisitos rigorosos em um processo que exigia atenção e
acompanhamento especializado de profissionais de várias áreas médicas.
Tudo correu
muito bem. O problema do hematoma foi resolvido. Os procedimentos resolveram a
complicação e o paciente teve alta dois dias depois.
Imagino que
muitas pessoas se impressionem com o que ele fez ao próprio corpo. Mutilação,
loucura, insanidade? Confesso que também me impressionei. Ainda mais com a
coragem que ele teve. Seu desejo levado às últimas consequências. Sua vontade
respeitada por sua família. Seu sonho de se libertar de uma prisão…
Em nossa
profissão, as marcas que ficam são as pessoas, não os motivos que as levaram ao
hospital. Muitas delas ficam esquecidas, excluídas e, muitas vezes, tratadas como doentes pela sociedade.
O evento
narrado está intimamente ligado a uma questão de dignidade. A dignidade humana
é uma questão constitucional, religiosa, ética e moral. Mais que isso, ela é,
ou deveria ser, um valor supremo da sociedade.
É digno a pessoa buscar uma vida social e legal adequada
ao seu verdadeiro gênero. Se houvesse a consciência de que esse exercício de
dignidade é um direito legitimo, as pessoas na situação desse paciente procurariam
orientação e assistência sem receio de censuras e sem colocar em risco sua
vida.
-o-
Ângelo Roman Neto
· Graduação em Medicina (PUC
PR - 2009).
· Residência em
Anestesiologia (Hospital Cajuru – Curitiba PR).
· Médico Anestesiologista no
Hospital Universitário Cajuru e Hospital Vitória em Curitiba.
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