Pesquisar este blog

Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

ESCOLHAS


ESCOLHAS
Ângelo Roman Neto

Em uma maca estacionada no corredor do Centro Cirúrgico, estava um paciente aguardando sua cirurgia. Eu estava de plantão nessa noite. Como de praxe, nós, anestesiologistas, conversamos com os pacientes antes dos procedimentos cirúrgicos e, sempre que possível, também em cirurgias de emergência, que era o caso daquele jovem.

Antes de encontrá-lo, verifiquei seus dados e vi que o procedimento seria o de uma drenagem de hematoma em bolsa escrotal. Fui ao encontro dele.

O rapaz, muito educado e tranquilo, respondeu às minhas perguntas naturalmente. Perguntei sua idade, peso, se tomava algum medicamento, enfim, uma anamnese prévia ao procedimento. Pedi que contasse o que havia ocorrido e como havia surgido o hematoma, se tinha sofrido um trauma no local machucado, como uma pancada. Ele respondeu que não, e apresentou uma justificativa surpreendente.

D.H.S. era casado, pai de uma filha de 3 anos e queria se tornar uma mulher. Sua esposa o apoiava, inclusive. Tomado por seu desejo, comprou livros de cirurgia e anatomia, instrumentos cirúrgicos, e retirou os próprios testículos. Queria que seu corpo parasse de produzir testosterona, hormônio masculino produzido pelos testículos, para se tornar mulher. Seu procedimento teve sucesso e também complicações. Após um sangramento no local, formou-se um hematoma. Daí, precisou ir ao hospital.  

Encaminhei o paciente à sala de cirurgia. Antes de colocá-lo sob anestesia geral, ele ainda me perguntou se existia a possibilidade de o pênis ser retirado na mesma operação. Expliquei que não seria possível, pois, para tal intervenção, era necessário que se cumprissem requisitos rigorosos em um processo que exigia atenção e acompanhamento especializado de profissionais de várias áreas médicas.

Tudo correu muito bem. O problema do hematoma foi resolvido. Os procedimentos resolveram a complicação e o paciente teve alta dois dias depois.

Imagino que muitas pessoas se impressionem com o que ele fez ao próprio corpo. Mutilação, loucura, insanidade? Confesso que também me impressionei. Ainda mais com a coragem que ele teve. Seu desejo levado às últimas consequências. Sua vontade respeitada por sua família. Seu sonho de se libertar de uma prisão…

Em nossa profissão, as marcas que ficam são as pessoas, não os motivos que as levaram ao hospital. Muitas delas ficam esquecidas, excluídas e, muitas vezes,  tratadas como doentes pela sociedade.

O evento narrado está intimamente ligado a uma questão de dignidade. A dignidade humana é uma questão constitucional, religiosa, ética e moral. Mais que isso, ela é, ou deveria ser, um valor supremo da sociedade.

É digno a pessoa buscar uma vida social e legal adequada ao seu verdadeiro gênero. Se houvesse a consciência de que esse exercício de dignidade é um direito legitimo, as pessoas na situação desse paciente procurariam orientação e assistência sem receio de censuras e sem colocar em risco sua vida.
-o-

Ângelo Roman Neto
·      Graduação em Medicina (PUC PR - 2009). 
·      Residência em Anestesiologia (Hospital Cajuru – Curitiba PR).
·      Médico Anestesiologista no Hospital Universitário Cajuru e Hospital Vitória em Curitiba.





Nenhum comentário:

Postar um comentário

Agradecemos seu comentário!