Será que o Brasil precisa de médicos cubanos?
Angelmar Constantino Roman
Estive em junho de 2017 em Cuba, compondo
um grupo de 20 professores médicos brasileiros que atenderam solicitação do
Ministério da Saúde do Brasil
para contextualizar médicos cubanos que
atuarão no programa Mais Médicos no Brasil, em continuação ao programa iniciado
em 2013 e mantido por conta de seus ótimos resultados. O governo federal está
sendo pressionado pelas prefeituras para manter os médicos estrangeiros.
Essa experiência me motivou a pensar
sobre a pergunta que dá título a este artigo, a partir de uma reflexão sobre a
formação médica no Brasil.
Desde a
antiguidade, as sociedades humanas buscam atender às demandas de manutenção e
recuperação da saúde coletiva. Inicialmente esse processo acontecia de forma
não ordenada, respondendo aos grandes surtos e pragas que dizimavam populações
e geravam pressões sociais. Com o Mercantilismo no mundo europeu, entre os
séculos XVI e XVIII, os Estados nacionais passaram a se preocupar com a saúde
da população, com o objetivo de assegurar boas condições produtivas aos
trabalhadores, pois isso tinha reflexos diretos na geração de riquezas.
Uma sistematização
mais elaborada e madura de uma política pública de saúde, orientada para a população,
porém, só vai se iniciar em princípios do século XIX na Alemanha. A morbidade
da população passa a ser parametrizada, além da simples contagem de nascimentos
e mortes.
Inspirado no modelo
alemão, no início do século XX, o Reino Unido instituiu um sistema de serviços
de saúde estruturado em três níveis hierarquizados de atenção. Essa
estruturação consolidou-se após a Segunda Guerra com a criação do National
Health Service – NHS (Sistema Nacional de Saúde) e mantém-se até hoje: 1º. atenção primária à saúde (APS), com as
unidades ambulatoriais, porta de entrada do sistema. Esse nível, quando
necessário, encaminha para os níveis: 2º. atenção
secundária, com os especialistas e hospitais de médios recursos, e, 3º. atenção terciária, com os hospitais de
referência, tipicamente os hospitais-escola. Assim, o cidadão recebe atenção
médica, sempre partindo do nível que envolve cuidados de menor densidade
tecnológica, a APS, apoiado numa parceria médico-família e num acompanhamento
ao longo do tempo. Cada médico cuida de um grupo de famílias. Quando necessário
(e só nesses casos), solicita consultoria ou encaminha aos outros níveis de
atenção: secundário ou terciário. Ao final do tratamento nesses níveis, o
paciente retorna ao seu médico de família.
Ora, esse é o
sistema público adotado também no Brasil. Não é bom? Sim, é ótimo! E por que vemos tantos problemas?
Além das variáveis
de ordem especialmente política, pesa a questão da formação médica no Brasil.
Ela é ambientada na atenção hospitalar terciária (hospitais universitários),
onde os cuidados são episódicos e pouco frequentes, quando deveria focar na
atenção primária. É algo como se os veterinários se formassem tratando bichos
de zoológicos: ficariam hábeis em tratar raridade e não saberiam cuidar de gato
e cachorro.
Três pesquisadores ingleses
constataram, em levantamento de 1961, replicado em 2001, que, numa população de
1000 adultos, cerca de 750 referem algum tipo de problema de saúde, mas apenas
250 buscam consultas médicas nos serviços de APS (nível primário). Desses 250,
nove são internados e cinco encaminhados a um especialista (nível secundário).
Somente um adulto, desse universo de 750 com queixas, precisará chegar a um
centro médico universitário (nível terciário). Como se percebe, é na Atenção Primária
à Saúde que se localiza a maior extensão do contato com a população. Os outros
níveis de atenção cuidam apenas de um pequeno extrato já adoecido da população.
O problema é que as
escolas de Medicina no Brasil têm como referência em seu modelo de formação, na
melhor das hipóteses, aqueles nove que foram internados e não a maioria da
população (os 250 que procuraram a APS). Portanto, mesmo atuando em uma pequena
fração da população, os níveis secundário e terciário de atenção ditam, em
grande medida, a lógica e as regras da formação nas faculdades de Medicina.
Mudanças mais
recentes colocaram o aluno, durante um breve período, nas unidades de atenção
primária. Mas o impacto é pequeno, dada a diluição dessa experiência no
bombardeio de informações predominantemente de medicina hospitalar.
Essa forma de
pensar saúde e doença fica mais comprometida ainda quando submetida à
mercantilização, pois dirige os médicos a especializações para atender uma
minoria de brasileiros privilegiados socialmente. O resultado é que precisamos
trazer médicos cubanos, eles sim disponíveis e preparados para cuidar da saúde
da maioria da população brasileira pobre e carente.
Espero que estas reflexões
nos ajudem a compreender por que uma ilha, pobre como Cuba, consegue oferecer gratuitamente
a seus habitantes uma das melhores assistências médicas do mundo (números da
OMS atestam essa afirmação), enquanto um país rico como o Brasil vive esta tragédia
cotidiana em que os ricos são ameaçados com excesso de medicina e os pobres,
com a ausência de cuidados básicos (números do Ministério da Saúde atestam essa
afirmação).
Sim, o Brasil
precisaria de médicos cubanos. Infelizmente!
-o-
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