Saúde da
mulher: nadando contra a corrente
Luiza Cadioli
Outro dia entrou no consultório uma
moça, 25 anos, com uma sacola nas mãos para a consulta. Tinha vindo mostrar os
resultados de exames feitos alguns meses atrás. Gastara um bom dinheiro, pois
não tinha convênio e estava muito preocupada com alguns resultados. Não tinha
nenhuma doença, era saudável, mas se sentia em dívida com sua saúde, culpada
por algumas alterações de exames e com as possíveis consequências. Papanicolau,
colposcopia, teste de DNA para HPV, ultrassonografia de mamas, ultrassonografia
de tireoide, ultrassonografia transvaginal e de abdome, exames de sangue dos
mais variados, um calhamaço!
Tudo isso seria absolutamente
aceitável não fossem aqueles exames em sua grande maioria desnecessários. E não
fosse essa moça 90% dos casos que atendo em uma segunda feira: jovem, sem
sintomas, preocupada com a saúde e em dívida quando não vai ao ginecologista
uma vez ao ano. Já existe clara evidência de que uma mulher jovem saudável pode
apenas coletar o papanicolau a cada três anos a partir dos 25 anos quando não
tiver nenhum sintoma. E pode fazer isso com uma enfermeira, se optar por fazer
a coleta em uma Unidade Básica de Saúde. Além disso, não precisa ter seu corpo
examinado anualmente para encontrar alterações a serem corrigidas.
Por que nós, mulheres (principalmente),
então, nos submetemos a essa rotina ginecológica? Por que saímos dos
consultórios com receitas de pílulas, quando na verdade namoramos meninas? Por
que vamos a uma primeira consulta depois de menstruar, quando na verdade nossa
dúvida é sobre corpo e sexualidade?
A falta de tempo, a medicalização
excessiva do corpo da mulher, a cultura de que o corpo feminino carrega
defeitos que precisam ser corrigidos, as consultas médicas cada vez mais rápidas, em que não há tempo de
qualidade de conversa e muitas vezes "só sobra tempo para pedir
exames", a medicina defensiva e tecnicista, a relação entre médico e
paciente cada vez mais frágil, a cultura do especialista e do check-up, a falta
de técnicas de comunicação enquanto matéria obrigatória nos cursos de medicina,
o medo de errar e a pouca aceitação à morte e às doenças que temos…tudo isso
são fatores que contribuem para menos conversa e mais exames.
Juan Gérvas, médico de família
espanhol, em seu livro São e Salvo, nos diz que estamos cada vez mais saudáveis
e vivendo mais tempo, porém com a sensação constante de que estamos doentes ou
procurando doenças.
Para além de um desperdício de tempo
e dinheiro, é um desperdício de saúde. Muitos desses exames podem trazer
malefícios, como aumento de intervenções em nossos corpos, sensação de doença
(como a que gera ter um teste de HPV positivo e, para o qual, na maioria das
vezes não há nada a fazer, além de continuar a coleta de papanicolau),
tratamentos com efeitos colaterais subestimados (enquanto os efeitos benéficos
são superestimados) e aparecimento ou piora de sintomas.
O paradoxo é que as mulheres que
menos precisam são as que mais vão aos médicos: são mais saudáveis por terem
maior renda, mas se submetem a exames que lhes fazem mais mal do que bem,
apesar de terem menor chance de estarem doentes. Enquanto isso, uma parcela de
mulheres de fato doentes, com sintomas muitas vezes avançados, não conseguem
agendar uma consulta no posto de saúde e muitas vezes nunca coletaram um
papanicolau.
A consulta, que deveria ser um
encontro poderoso e a oportunidade de construir autonomia e autoconhecimento,
virou uma sala de preenchimento de papéis, como se só eles nos dissessem a
verdade. Como se papéis e exames não falhassem. A falta de confiança em nosso próprio
corpo, uma confiança cega nos exames e uma relação superficial com o
profissional de saúde fazem do momento da consulta um momento frágil e
improdutivo. Além disso, conversar, sanar dúvidas e estar disposto a entender
conflitos leva tempo, às vezes mais de uma consulta. Há pouca paciência para
essa construção. A mercantilização da saúde não permite esperas, dúvidas e
cautela. Ela demanda ação. E pra já!
Mas existe uma parcela das mulheres
que se incomoda ao sair de um consultório com uma receita de pílula quando
manifestou no começo da consulta que não quer tomar hormônios; que não quer ser
julgada por sua sexualidade e que quer conhecer seu ciclo menstrual, entender
por que tem corrimento em vez de só ganhar uma “pomada”. Para essas mulheres,
o tempo é valioso.
-o-
Luiza Cadioli
· Médica de família e comunidade formada pela
USP.
· Trabalha na Unidade Básica de Saúde Jardim
D´abril e no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo (SP)
· e-mail: luiza.cadioli@gmail.com
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