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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 28 de julho de 2017

SAÚDE DA MULHER: NADANDO CONTRA A CORRENTE




Saúde da mulher: nadando contra a corrente

Luiza Cadioli

Outro dia entrou no consultório uma moça, 25 anos, com uma sacola nas mãos para a consulta. Tinha vindo mostrar os resultados de exames feitos alguns meses atrás. Gastara um bom dinheiro, pois não tinha convênio e estava muito preocupada com alguns resultados. Não tinha nenhuma doença, era saudável, mas se sentia em dívida com sua saúde, culpada por algumas alterações de exames e com as possíveis consequências. Papanicolau, colposcopia, teste de DNA para HPV, ultrassonografia de mamas, ultrassonografia de tireoide, ultrassonografia transvaginal e de abdome, exames de sangue dos mais variados, um calhamaço!

Tudo isso seria absolutamente aceitável não fossem aqueles exames em sua grande maioria desnecessários. E não fosse essa moça 90% dos casos que atendo em uma segunda feira: jovem, sem sintomas, preocupada com a saúde e em dívida quando não vai ao ginecologista uma vez ao ano. Já existe clara evidência de que uma mulher jovem saudável pode apenas coletar o papanicolau a cada três anos a partir dos 25 anos quando não tiver nenhum sintoma. E pode fazer isso com uma enfermeira, se optar por fazer a coleta em uma Unidade Básica de Saúde. Além disso, não precisa ter seu corpo examinado anualmente para encontrar alterações a serem corrigidas.

Por que nós, mulheres (principalmente), então, nos submetemos a essa rotina ginecológica? Por que saímos dos consultórios com receitas de pílulas, quando na verdade namoramos meninas? Por que vamos a uma primeira consulta depois de menstruar, quando na verdade nossa dúvida é sobre corpo e sexualidade?

A falta de tempo, a medicalização excessiva do corpo da mulher, a cultura de que o corpo feminino carrega defeitos que precisam ser corrigidos, as consultas médicas  cada vez mais rápidas, em que não há tempo de qualidade de conversa e muitas vezes "só sobra tempo para pedir exames", a medicina defensiva e tecnicista, a relação entre médico e paciente cada vez mais frágil, a cultura do especialista e do check-up, a falta de técnicas de comunicação enquanto matéria obrigatória nos cursos de medicina, o medo de errar e a pouca aceitação à morte e às doenças que temos…tudo isso são fatores que contribuem para menos conversa e mais exames.

Juan Gérvas, médico de família espanhol, em seu livro São e Salvo, nos diz que estamos cada vez mais saudáveis e vivendo mais tempo, porém com a sensação constante de que estamos doentes ou procurando doenças.

Para além de um desperdício de tempo e dinheiro, é um desperdício de saúde. Muitos desses exames podem trazer malefícios, como aumento de intervenções em nossos corpos, sensação de doença (como a que gera ter um teste de HPV positivo e, para o qual, na maioria das vezes não há nada a fazer, além de continuar a coleta de papanicolau), tratamentos com efeitos colaterais subestimados (enquanto os efeitos benéficos são superestimados) e aparecimento ou piora de sintomas.

O paradoxo é que as mulheres que menos precisam são as que mais vão aos médicos: são mais saudáveis por terem maior renda, mas se submetem a exames que lhes fazem mais mal do que bem, apesar de terem menor chance de estarem doentes. Enquanto isso, uma parcela de mulheres de fato doentes, com sintomas muitas vezes avançados, não conseguem agendar uma consulta no posto de saúde e muitas vezes nunca coletaram um papanicolau.

A consulta, que deveria ser um encontro poderoso e a oportunidade de construir autonomia e autoconhecimento, virou uma sala de preenchimento de papéis, como se só eles nos dissessem a verdade. Como se papéis e exames não falhassem. A falta de confiança em nosso próprio corpo, uma confiança cega nos exames e uma relação superficial com o profissional de saúde fazem do momento da consulta um momento frágil e improdutivo. Além disso, conversar, sanar dúvidas e estar disposto a entender conflitos leva tempo, às vezes mais de uma consulta. Há pouca paciência para essa construção. A mercantilização da saúde não permite esperas, dúvidas e cautela. Ela demanda ação. E pra já!

Mas existe uma parcela das mulheres que se incomoda ao sair de um consultório com uma receita de pílula quando manifestou no começo da consulta que não quer tomar hormônios; que não quer ser julgada por sua sexualidade e que quer conhecer seu ciclo menstrual, entender por que tem corrimento em vez de só ganhar uma “pomada”. Para essas mulheres, o tempo é valioso.

-o-



Luiza Cadioli



·      Médica de família e comunidade formada pela USP.
·      Trabalha na Unidade Básica de Saúde Jardim D´abril e no Coletivo Feminista Sexualidade e Saúde. São Paulo (SP)
·      e-mail: luiza.cadioli@gmail.com




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