Difícil acreditar, impossível entender
Anderson Roman
Eu ouvi dizer que uma médica enviava cartas aos seus pacientes, a
maioria saudáveis ou com queixas digestivas leves, lembrando que estava na
época de fazer sua endoscopia digestiva de rotina. Eu vi uma série inúmera de
exames desnecessários solicitados por um médico, que se vangloriava disso ao
paciente com um "vai que encontra alguma coisa...".
Eu vi prescrições de um médico, descritas ao paciente como fundamentais,
holísticas e moleculares. Partiam de diagnóstico de deficiências por avaliações
microscópicas de fios de cabelo. Vários dos tratamentos se davam por remédios
intravenosos que ele mesmo produzia. E vendia.
Eu vi receitas com reposições de vitamina D em jovem saudável, que foi
intoxicada pela vitamina e quase perdeu definitivamente as funções de seus
rins. Eu vejo check-ups em jovens. Em jovens saudáveis.
Eu vejo, com frequência, medicações em dose desnecessária, combinações
desaconselhadas, prescrições questionáveis, algumas até sabidamente maléficas.
Eu vejo, diariamente, exames inúteis, sem indicação. Vejo seus malefícios. Sim,
exames podem fazer mal.
Fazer medicina é coisa complexa. Não é para despreparados. A vida está
em jogo. Decisões são difíceis. Há questionamentos científicos. Há debate entre
certo e errado. Na maioria das vezes não há certeza definitiva. É isso que a
torna tão rica e desafiadora. Suficiente para interessar aos audaciosos, aos
curiosos, aos cuidadores, aos sensíveis, aos de bom coração. Que são a
grandessíssima maioria dos médicos que conheço. Mas por tanta indefinição, há
um campo enorme para a bandidagem.
Realizar exames em excesso é hoje uma das maiores pragas da Medicina.
Por onde se pretende buscar diagnósticos difíceis, que podem levar a pessoa à morte, há espaço para o charlatão fazer das suas artes. Discurso dócil,
grandiloquente, palavras firmes, notícias duras, provocar o medo, medo da
morte. "Não é melhor prevenir? Ainda não fez esse exame? Não tem medo de
ter um câncer? Vamos examinar a sua genética? Não quer saber que doenças você
pode ter na sua vida? Não tem medo?". Incutir o medo, a insegurança, é
arma de vendas muito conhecida também em outras áreas, como seguros e segurança
patrimonial.
O que faz um médico, possivelmente bem formado, solicitar exames
desnecessários? Há os inseguros que, por não terem certeza, se esmeram na
busca. Não é o caso dos exemplos acima. Há os incompetentes, que sabidamente
vão além do seu conhecimento, pretendendo demonstrar que dominam o tema – em
geral resolvem apenas os resultados normais (que não precisam de solução, pois
são normais). E há os de má índole, que usam exames para obter ganhos diretos
(quando são os executores ou proprietários dos exames) ou indiretos (que levam
a um tratamento que é dado por quem pediu o exame).
Check-up em jovens não é indicado e é desaconselhado – traz mais
malefícios que benefícios, por diagnósticos errôneos e investigações
desnecessárias. Endoscopia de rotina é indicação rara. Rotina significa
repetições regulares e planejadas. Em jovens com síndromes dispépticas (azias,
má digestão, refluxo gastresofágico, entre outros sintomas), é raro ser
indicado. Indicar rotineiramente pode sugerir que há interesse financeiro por
trás.
Dosagens de níveis de vitaminas em indivíduos normais, sem doenças
digestivas graves, sem desnutrição clínica, são também de raríssima indicação.
Repor o que não é necessário pode fazer mal. Reposições intravenosas de
elementos raros na natureza (chamados de oligoelementos) são medidas ineficazes
e custosas, sem qualquer evidência de efeito benéfico, exceto em raras
síndromes complexas.
É difícil acreditar que há médicos que agem dessa forma. Torço para que
seja apenas insegurança, falta de estudo ou visão equivocada. Mas é provável
que se trate de desvirtuação da arte médica. Sai de foco o cuidar. Entra o
ganhar.
-o-
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