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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sábado, 1 de julho de 2017

DIFÍCIL ACREDITAR, IMPOSSÍVEL ENTENDER


Difícil acreditar, impossível entender

Anderson Roman

Eu ouvi dizer que uma médica enviava cartas aos seus pacientes, a maioria saudáveis ou com queixas digestivas leves, lembrando que estava na época de fazer sua endoscopia digestiva de rotina. Eu vi uma série inúmera de exames desnecessários solicitados por um médico, que se vangloriava disso ao paciente com um "vai que encontra alguma coisa...".

Eu vi prescrições de um médico, descritas ao paciente como fundamentais, holísticas e moleculares. Partiam de diagnóstico de deficiências por avaliações microscópicas de fios de cabelo. Vários dos tratamentos se davam por remédios intravenosos que ele mesmo produzia. E vendia.

Eu vi receitas com reposições de vitamina D em jovem saudável, que foi intoxicada pela vitamina e quase perdeu definitivamente as funções de seus rins. Eu vejo check-ups em jovens. Em jovens saudáveis.

Eu vejo, com frequência, medicações em dose desnecessária, combinações desaconselhadas, prescrições questionáveis, algumas até sabidamente maléficas. Eu vejo, diariamente, exames inúteis, sem indicação. Vejo seus malefícios. Sim, exames podem fazer mal.

Fazer medicina é coisa complexa. Não é para despreparados. A vida está em jogo. Decisões são difíceis. Há questionamentos científicos. Há debate entre certo e errado. Na maioria das vezes não há certeza definitiva. É isso que a torna tão rica e desafiadora. Suficiente para interessar aos audaciosos, aos curiosos, aos cuidadores, aos sensíveis, aos de bom coração. Que são a grandessíssima maioria dos médicos que conheço. Mas por tanta indefinição, há um campo enorme para a bandidagem.

Realizar exames em excesso é hoje uma das maiores pragas da Medicina. Por onde se pretende buscar diagnósticos difíceis, que podem levar a pessoa à morte, há espaço para o charlatão fazer das suas artes. Discurso dócil, grandiloquente, palavras firmes, notícias duras, provocar o medo, medo da morte. "Não é melhor prevenir? Ainda não fez esse exame? Não tem medo de ter um câncer? Vamos examinar a sua genética? Não quer saber que doenças você pode ter na sua vida? Não tem medo?". Incutir o medo, a insegurança, é arma de vendas muito conhecida também em outras áreas, como seguros e segurança patrimonial.

O que faz um médico, possivelmente bem formado, solicitar exames desnecessários? Há os inseguros que, por não terem certeza, se esmeram na busca. Não é o caso dos exemplos acima. Há os incompetentes, que sabidamente vão além do seu conhecimento, pretendendo demonstrar que dominam o tema – em geral resolvem apenas os resultados normais (que não precisam de solução, pois são normais). E há os de má índole, que usam exames para obter ganhos diretos (quando são os executores ou proprietários dos exames) ou indiretos (que levam a um tratamento que é dado por quem pediu o exame).

Check-up em jovens não é indicado e é desaconselhado – traz mais malefícios que benefícios, por diagnósticos errôneos e investigações desnecessárias. Endoscopia de rotina é indicação rara. Rotina significa repetições regulares e planejadas. Em jovens com síndromes dispépticas (azias, má digestão, refluxo gastresofágico, entre outros sintomas), é raro ser indicado. Indicar rotineiramente pode sugerir que há interesse financeiro por trás.

Dosagens de níveis de vitaminas em indivíduos normais, sem doenças digestivas graves, sem desnutrição clínica, são também de raríssima indicação. Repor o que não é necessário pode fazer mal. Reposições intravenosas de elementos raros na natureza (chamados de oligoelementos) são medidas ineficazes e custosas, sem qualquer evidência de efeito benéfico, exceto em raras síndromes complexas.

É difícil acreditar que há médicos que agem dessa forma. Torço para que seja apenas insegurança, falta de estudo ou visão equivocada. Mas é provável que se trate de desvirtuação da arte médica. Sai de foco o cuidar. Entra o ganhar.


-o-


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