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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

“SE PERDER O RIM, É SÓ FAZER HEMODIÁLISE!”



Marcus Vinicius

Fiz meu internato do sexto ano do curso de Medicina em Porto Alegre, no Hospital Conceição. Lá tive contato com profissionais médicos que me inspiram até hoje por seu conhecimento técnico e sensibilidade. Com esses caras, entendi a nossa profissão como uma mistura de Ciência e Arte, conhecimento científico aplicado com sabedoria e ética.

Durante o estágio de Pediatria, trabalhei com um preceptor (médico orientador) que me marcou demais. Ele era responsável pelo setor de internação de crianças, a maioria delas com diagnóstico de pneumonia. Esses pacientes eram internados pelo médico do pronto-socorro, que escolhia o antibiótico a ser usado durante toda internação. Quando nós, internos e residentes, chegávamos na enfermaria, apresentávamos os casos para o preceptor e discutíamos as condutas. Em quase todos os casos, ele trocava o antibiótico indicado pelo médico do pronto-socorro, por outro de menor espectro(1), portanto com menos efeitos colaterais, sem nenhum prejuízo para as crianças.

Eu ficava impressionado e  pensava: “Será que algum dia terei conhecimento e coragem para agir da mesma forma?” Quando você acerta, ótimo! O paciente não foi exposto a uma medicação que pode ter potenciais efeitos danosos como aumentar a resistência bacteriana, exterminar a flora normal do intestino, causando diarreia, etc. Mas, se você estiver errado, terá  oportunidade para corrigir seu erro?

Posteriormente, já na residência em Cardiologia, em outra cidade, me deparei com esse dilema. Tínhamos um paciente internado na UTI que apresentou uma infecção hospitalar grave: mediastinite. Após um período de uso de antibióticos de amplo espectro, ele começou a melhorar rapidamente.

Em uma das visitas que fiz a esse paciente na UTI, percebi que havia sido indicado um antifúngico chamado anfotericina B. Pensei: “Ele não teve piora do quadro clínico. Por que usar um medicamento cheio de efeitos colaterais, que pode, inclusive, trazer dano renal permanente, se não há evidência de infecção fúngica grave?” Fui conversar com a médica plantonista e ela me respondeu que havia prescrito aquele medicamente porque o paciente estava com temperatura de 38oC.

No contexto daquele paciente, essa temperatura não evidenciava piora da infecção. Lembrei, então, do meu preceptor de Pediatria no internato. Fiz um exame físico minucioso no paciente, olhei novamente todos os exames complementares, retirei o acesso venoso central - eu achei que a febre estava relacionada ao tempo prolongado de uso desse cateter - e tirei o medicamento antifúngico que havia sido indicado pela plantonista. No outro dia, o paciente tinha melhorado tanto que lhe dei alta da UTI. Fiquei contente por ter tomado aquela decisão.

No dia seguinte, fui chamado à Direção do hospital. Lá estavam a plantonista e meu chefe da residência. Fui acusado de irresponsável por ter suspendido a medicação sem autorização dela. A médica disse ainda que eu não tinha conhecimento suficiente para tomar essa conduta e que havia passado por cima do serviço de infectologia do hospital.

Argumentei que minha conduta não havia trazido dano ao paciente. Muito pelo contrário: havia o livrado de um risco grande de piora e até de perda definitiva da função renal caso aquele medicamento recomendado pela médica fosse aplicado. Diante de meus argumentos, a doutora retrucou: “Se perder o rim, é só fazer hemodiálise!”

Esse caso quase me levou à expulsão da residência, mas não me arrependo. O seguimento ambulatorial desse paciente mostrou que a conduta tomada havia sido a melhor. Não agi dessa forma para mostrar que minha colega estava errada. Apenas trato as pessoas como se estivesse tratando meus pais: com carinho, respeito e responsabilidade. Essa é a minha missão, essa é a minha arte.
                                                                                         


      
-o-








(1) Espectro se refere ao potencial de ação do medicamento. Antibiótico de amplo espectro é aquele que mata mais tipos de bactérias, mas que pode também trazer mais efeitos colaterais danosos ao paciente.


Um comentário:

  1. Que sorte teve o paciente de você se arriscar e seguir seu saber e cuidado. Que bom seria se todos os médicos olhassem para seus pacientes com o carinho de quem olha para seus pais. Certamente seriam menos rins perdidos na estrada da arrogância.

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