Marcus Vinicius
Fiz meu internato do sexto ano do curso de Medicina em Porto
Alegre, no Hospital Conceição. Lá tive contato com profissionais médicos que me
inspiram até hoje por seu conhecimento técnico e sensibilidade. Com esses
caras, entendi a nossa profissão como uma mistura de Ciência e Arte,
conhecimento científico aplicado com sabedoria e ética.
Durante o estágio de
Pediatria, trabalhei com um preceptor (médico orientador) que me marcou demais.
Ele era responsável pelo setor de internação de crianças, a maioria delas com
diagnóstico de pneumonia. Esses pacientes eram internados pelo médico do
pronto-socorro, que escolhia o antibiótico a ser usado durante toda internação.
Quando nós, internos e residentes, chegávamos na enfermaria, apresentávamos os
casos para o preceptor e discutíamos as condutas. Em quase todos os casos, ele
trocava o antibiótico indicado pelo médico do pronto-socorro, por outro de
menor espectro(1), portanto com menos efeitos
colaterais, sem nenhum prejuízo para as crianças.
Eu ficava impressionado
e pensava: “Será
que algum dia terei conhecimento e coragem para agir da mesma forma?” Quando
você acerta, ótimo! O paciente não foi exposto a uma medicação que pode ter
potenciais efeitos danosos como aumentar a resistência bacteriana, exterminar a
flora normal do intestino, causando diarreia, etc. Mas, se você estiver errado,
terá oportunidade para corrigir seu erro?
Em uma das visitas que fiz
a esse paciente na UTI, percebi que havia sido indicado um antifúngico chamado
anfotericina B. Pensei: “Ele não teve piora do quadro clínico. Por que usar
um medicamento cheio de efeitos colaterais, que pode, inclusive, trazer dano
renal permanente, se não há evidência de infecção fúngica grave?” Fui
conversar com a médica plantonista e ela me respondeu que havia prescrito
aquele medicamente porque o paciente estava com temperatura de 38oC.
No contexto daquele
paciente, essa temperatura não evidenciava piora da infecção. Lembrei, então,
do meu preceptor de Pediatria no internato. Fiz um exame físico minucioso no
paciente, olhei novamente todos os exames complementares, retirei o acesso
venoso central - eu achei que a febre estava relacionada ao tempo prolongado de
uso desse cateter - e tirei o medicamento antifúngico que havia sido indicado
pela plantonista. No outro dia, o paciente tinha melhorado tanto que lhe dei
alta da UTI. Fiquei contente por ter tomado aquela decisão.
No dia seguinte, fui
chamado à Direção do hospital. Lá estavam a plantonista e meu chefe da
residência. Fui acusado de irresponsável por ter suspendido a medicação sem
autorização dela. A médica disse ainda que eu não tinha conhecimento suficiente
para tomar essa conduta e que havia passado por cima do serviço de infectologia
do hospital.
Argumentei que minha
conduta não havia trazido dano ao paciente. Muito pelo contrário: havia o
livrado de um risco grande de piora e até de perda definitiva da função renal
caso aquele medicamento recomendado pela médica fosse aplicado. Diante de meus
argumentos, a doutora retrucou: “Se perder o rim, é só fazer hemodiálise!”
Esse caso quase me levou à
expulsão da residência, mas não me arrependo. O seguimento ambulatorial desse
paciente mostrou que a conduta tomada havia sido a melhor. Não agi dessa forma
para mostrar que minha colega estava errada. Apenas trato as pessoas como se
estivesse tratando meus pais: com carinho, respeito e responsabilidade. Essa é
a minha missão, essa é a minha arte.
-o-
Que sorte teve o paciente de você se arriscar e seguir seu saber e cuidado. Que bom seria se todos os médicos olhassem para seus pacientes com o carinho de quem olha para seus pais. Certamente seriam menos rins perdidos na estrada da arrogância.
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