Hamilton
Hourneaux Pompeu
Nas mais de duas décadas em que
atuei como médico ginecologista e obstetra, entre todas as situações eticamente
conflitantes que enfrentei, o aborto foi recorrente.
Se, por um lado, não instiguei
pacientes a que praticassem abortos, também não tentei demover aquelas que me
comunicavam sua opção de pôr fim a uma gravidez indesejada ou inoportuna, e me
pautei por procurar dar algum apoio a todas que demonstravam pretender lançar
mão desse recurso extremo e, na maioria das vezes, desesperado.
Dada a casualidade do atendimento,
não chegava a me abalar diante da legião de mulheres desconhecidas que calhava examinar
em Pronto Socorro e que me relatavam que pretendiam abortar. Ao contrário, sempre
me senti em dívida com pacientes por mim acompanhadas por longo tempo e que, por
alguma circunstância que somente elas tinham como ponderar, estavam decididas a
fazer o mesmo. Sentia que, após anos de uma viagem conjunta na qual elas tinham
me confiado a condução do barco, eu lhes faltava em um momento crucial, justamente
quando atravessavam águas turbulentas, rompendo nosso vínculo de fidelidade gradativamente
construído.
Confesso que não as deixei à deriva
por convicção pessoal, moral ou religiosa, mas por medo de desdobramentos
legais caso praticasse um ato que, salvo em situações excepcionais, é
considerado crime (Código Penal, artigos 124 a 128), e eu não estava disposto a
correr o risco de perder minha principal ferramenta de trabalho, meu registro
no CRM, tão duramente conquistada.
No meu íntimo, nunca enxerguei essas
mulheres como criminosas, até porque perdi a conta dos casos em que achei que estavam
prestes a praticar um gesto de profunda coragem e lucidez diante da sua
realidade de vida, mesmas qualidades que admiro em pessoas acometidas por graves
doenças incuráveis que optam por suicídio assistido ou que imploram por
eutanásia, quando viver vai se tornando um fardo pesado demais.
Para contornar meu mal-estar e tentar
minimizar a sensação de que abandonava essas mulheres de quem até então costumava
cuidar, procurei orientá-las sobre riscos, expor limites de segurança e, na
medida do possível, me coloquei à disposição para reavaliá-las depois de
consumado o procedimento por alguém mais corajoso, coerente ou ganancioso que
eu.
Passados tantos anos e ainda
remoendo meu conflito interno diante do modo como consegui conduzir essa
situação limite, recebi estarrecido a lamentável notícia de que um médico
atendeu uma paciente e, em seguida, a denunciou à polícia, por ter constatado
que o motivo da sua ida ao hospital era hemorragia decorrente de um aborto
provocado (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2015/02/1592839-medico-chama-policia-apos-atender-jovem-que-fez-aborto-na-grande-sp.shtml).
Se as circunstâncias do caso forem
verídicas, além da triste atitude de não só deixar emocionalmente desamparada quem
estava aos seus cuidados em momento de fragilidade, mas também procurar
incriminá-la, o profissional incorreu em grave falha ética ao romper o pacto
tácito de segredo que se constitui na base do relacionamento médico-paciente
(Código de Ética Médica, artigo 73).
Em paralelo, prestou um grande
desserviço à comunidade médica, por alarmar e deseducar outras mulheres,
aumentando o risco de que omitam dos médicos que as assistem em serviços de
urgência situações embaraçosas ou ilícitas, por medo de também se verem vítimas
de denúncia, omissão essa que, potencialmente, prejudica diagnósticos e resultados
terapêuticos.
Se alardear segredo profissional,
por si só, já é conduta deplorável sob o prisma moral, chamar a polícia é
absolutamente inadmissível. E, no âmbito estritamente legal, o silêncio do
médico quanto às informações que conheça somente em razão de segredo
profissional, mesmo quando convocado a depor como parte ou como testemunha em
processo judicial, é permitido tanto pelo Código de Processo Civil (artigos 388
e 488), quanto pelo Código de Processo Penal (artigo 207). E sob o enfoque
ético, a quebra do sigilo, ainda que em tais situações, é expressamente vedada
(Código de Ética Médica, artigo 73, parágrafo único).
Tenhamos ou não aversão à sua
ocorrência, é preciso reconhecer que o aborto provocado é um fato social muito
comum, apesar da sua proibição. Diante dele, quer o médico se mova por
convicção, como parece ter feito o denunciante, quer se deixe paralisar pelo medo,
como fiz eu, o mínimo que dele se espera é silêncio e discrição, em respeito a
quem lhe confia não somente sua vida, mas também sua intimidade.
-o-
Hamilton
Hourneaux Pompeu
·
Juiz do Trabalho Substituto no TRT 2a Região – São Paulo
·
Professor de Graduação em Direito e de Pós-Graduação em Auditoria e Sistemas de Saúde
·
Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie – SP
·
Especialista em Direito Material e Processual do
Trabalho pela Universidade Gama Filho - RJ
·
Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela
Universidade Gama Filho - RJ
·
Graduado em Medicina pela UFPR
·
Doutor em Ciências pela Faculdade de Medicina da USP
· Ginecologista e
Obstetra de 1988 a 2013.
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