“VAI DAR NEGÓCIO
LOGO PARA A CASA?”
Angelmar Constantino Roman
A TEORIA
Tenho
recebido pacientes que, segundo avalio, somatizaram sintomas emocionais, ou
seja, transformaram sofrimentos emocionais em dores físicas. A base teórica
dessa eventual somatização foi bem discutida na Psicanálise. Mas, se fosse pra
sintetizar esse fenômeno de forma simplista, poderíamos dizer que as vivências
importantes da existência devem ter um
eco de natureza simbólica e não apenas mecânica e racional. A vivência dolorosa
que não passe pelo domínio do SIMBÓLICO tende a não ser resolvida. Fica
pendente de solução e pode sedimentar-se no físico na forma de doenças.
Para
exemplificar: se a pessoa tem um luto importante em sua vida e não vivencia essa
perda EMOCIONALMENTE, permanecendo apenas com explicações racionais dadas pra
si mesmo ou fugindo de entrar na emoção certamente dolorida e sofrida, tenderá a
concretizar no corpo esse grito que não deu com a alma, de forma simbolizada.
Lembro de uma aula lá na pós-graduação da USP: “só somatiza quem não é capaz de simbolizar”.
Muito
bem. Quando percebo no paciente algum
caso de somatização que seja óbvio, tento combinar algum tipo de ritual simples
pra tentar trazer aquela vivência-mal-vivida-simbolicamente de volta, pra limpar,
fluir, tirar dessa incrustração no corpo. Isso através de algum tipo de ritual,
que é um evento propício para a vivência do simbólico, e que parece ser um dos poucos métodos de
diálogo com o inconsciente.
É uma medida
de certa forma arriscada, pois os dois papéis atribuídos ao médico em nossa
sociedade - de pajé (tácito) e de técnico (explícito) - podem se confundir,
principalmente numa época de bloqueio das metáforas.
A PRÁTICA
Me
apareceu no consultório uma senhora de 57 anos, Dona Bronislava, vinda do
interior, acompanhada de seu filho. Uma comadre dela havia pagado a consulta e
também a viagem. Relatou com amargura vários sintomas de ordem física, não
conseguindo esconder uma angústia profunda que lhe transtornava a alma.
Em sua
narrativa, falou da preocupação com o filho alcoolista e revelou um rancor
muito forte do ex-marido, também alcoolista, que havia sido muito violento. Ela
se ressentia das humilhações mas, muito mais, de ter tomado a iniciativa de
separar-se. Logo após o rompimento, o sujeito morreu pelas consequências do
próprio alcoolismo. Mesmo passados já 10 anos, ela não conseguia deixar de
pensar em tudo isso, misturando raiva, tristeza e arrependimento com as dores
que se distribuíam por seu corpo. E culpa. Muita culpa.
Abordei
terapeuticamente a paciente com os fármacos convencionais e recomendações sobre
alimentação gostosa e saudável, alongamentos e atividade física prazerosa. Além
disso, seguindo um ritual antigo e popular que utilizo já há alguns anos, pedi
à senhora que escrevesse uma carta ao falecido e a colocasse num envelope
endereçado ao ex-marido. Esse envelope deveria ser colocado dentro de algum
livro que ela tivesse em casa e que fosse importante para ela. Combinamos que
seria na Bíblia que ela tem no seu quarto e à qual dedica leituras esporádicas,
mas respeitosas.
Após duas
semanas com o envelope maturando lá na Bíblia sagrada, ela deveria levá-lo até
o "sementério" (como dizem os pajeadores gaúchos e que acho muito mais bonito que
cemitério). Lá no "sementério", deveria ir até o Cruzeiro (que é uma Cruz grande
onde os crentes-no-mundo-espiritual acendem uma vela pros falecidos que estejam enterrados em
outros-locais-que-não-ali) e incinerar esse envelope, com alguma chama de
alguma vela acesa ali.
Para isso,
deveria levar um prato branco de louça (todos esses detalhes meticulosos são
fundamentais para o ritual!) sobre o qual deveria pôr o envelope para queimar.
Uma vez queimado, deveria colocar o prato e as cinzas do envelopecomacarta-que-havia-sido-escrita-pro-falecido-a-quem-ela-dedicava-muito-ressentimento
num saco de papel e levar pra casa.
Em casa,
finalizaria o ritual: jogaria as cinzas no vaso sanitário e daria descarga (ou
num rio, quando possível), percebendo como aquilo tudo estava sendo levado
água-a-fora. Depois, iria lavar o prato branco e guardar como a concretização
de todos os eventos espinhosos que estavam - ANTES - incrustrados no corpo. Ela
deveria guardar o prato em algum lugar e nunca mais usá-lo pra nada. Seria como
uma lembrança, um bibelô. Não um utilitário.
O RESULTADO
Eu havia
pedido ao filho que me enviasse mensagens pelo WhatsApp dando notícias da mãe.
Passados pouco mais de quinze dias da consulta, ele me manda o seguinte
recado:
"Boa noite a dona
bronislava pediu pra avisar que fez o
que era pra fazer no cemitério deu tudo certo." E emendou: " a dona bronislava pediu pra perguntar se daria pra saber se vai dar negócio logo para
a casa. Ela pediu pra perguntar sobre a venda."
Claro. Se eu propus um diálogo que foi interpretado
como mágico, obviamente eu deveria saber sobre a ambicionada venda da casa
dela. Algo como as cartomantes e ciganas fazem.
Eu, que assinalei pra eles que era mais pajé que técnico, obviamente
saberia sobre o futuro, inclusive dos negócios. Talvez até receitasse remédios que
serviriam pra aparecer um bom comprador...
Tenho que
reciclar minha interlocução, cuidando mais da audiência...
-o-
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