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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

“VAI DAR NEGÓCIO LOGO PARA A CASA?”




“VAI DAR NEGÓCIO LOGO PARA A CASA?”

Angelmar Constantino Roman

A TEORIA

Tenho recebido pacientes que, segundo avalio, somatizaram sintomas emocionais, ou seja, transformaram sofrimentos emocionais em dores físicas. A base teórica dessa eventual somatização foi bem discutida na Psicanálise. Mas, se fosse pra sintetizar esse fenômeno de forma simplista, poderíamos dizer que as vivências importantes da existência devem ter um  eco de natureza simbólica e não apenas mecânica e racional. A vivência dolorosa que não passe pelo domínio do SIMBÓLICO tende a não ser resolvida. Fica pendente de solução e pode sedimentar-se no físico na forma de doenças.

Para exemplificar: se a pessoa tem um luto importante em sua vida e não vivencia essa perda EMOCIONALMENTE, permanecendo apenas com explicações racionais dadas pra si mesmo ou fugindo de entrar na emoção certamente dolorida e sofrida, tenderá a concretizar no corpo esse grito que não deu com a alma, de forma simbolizada. Lembro de uma aula lá na pós-graduação da USP: “só somatiza quem não é capaz de simbolizar”. 

Muito bem.  Quando percebo no paciente algum caso de somatização que seja óbvio, tento combinar algum tipo de ritual simples pra tentar trazer aquela vivência-mal-vivida-simbolicamente de volta, pra limpar, fluir, tirar dessa incrustração no corpo. Isso através de algum tipo de ritual, que é um evento propício para a vivência do simbólico, e  que parece ser um dos poucos métodos de diálogo com o inconsciente.

É uma medida de certa forma arriscada, pois os dois papéis atribuídos ao médico em nossa sociedade - de pajé (tácito) e de técnico (explícito) - podem se confundir, principalmente numa época de bloqueio das metáforas. 


A PRÁTICA

Me apareceu no consultório uma senhora de 57 anos, Dona Bronislava, vinda do interior, acompanhada de seu filho. Uma comadre dela havia pagado a consulta e também a viagem. Relatou com amargura vários sintomas de ordem física, não conseguindo esconder uma angústia profunda que lhe transtornava a alma.

Em sua narrativa, falou da preocupação com o filho alcoolista e revelou um rancor muito forte do ex-marido, também alcoolista, que havia sido muito violento. Ela se ressentia das humilhações mas, muito mais, de ter tomado a iniciativa de separar-se. Logo após o rompimento, o sujeito morreu pelas consequências do próprio alcoolismo. Mesmo passados já 10 anos, ela não conseguia deixar de pensar em tudo isso, misturando raiva, tristeza e arrependimento com as dores que se distribuíam por seu corpo. E culpa. Muita culpa.

Abordei terapeuticamente a paciente com os fármacos convencionais e recomendações sobre alimentação gostosa e saudável, alongamentos e atividade física prazerosa. Além disso, seguindo um ritual antigo e popular que utilizo já há alguns anos, pedi à senhora que escrevesse uma carta ao falecido e a colocasse num envelope endereçado ao ex-marido. Esse envelope deveria ser colocado dentro de algum livro que ela tivesse em casa e que fosse importante para ela. Combinamos que seria na Bíblia que ela tem no seu quarto e à qual dedica leituras esporádicas, mas respeitosas.

Após duas semanas com o envelope maturando lá na Bíblia sagrada, ela deveria levá-lo até o "sementério" (como dizem os pajeadores gaúchos e que acho muito mais bonito que cemitério). Lá no "sementério", deveria ir até o Cruzeiro (que é uma Cruz grande onde os crentes-no-mundo-espiritual acendem uma vela pros falecidos que  estejam enterrados em outros-locais-que-não-ali) e incinerar esse envelope, com alguma chama de alguma vela acesa ali.

Para isso, deveria levar um prato branco de louça (todos esses detalhes meticulosos são fundamentais para o ritual!) sobre o qual deveria pôr o envelope para queimar. Uma vez queimado, deveria colocar o prato e as cinzas do envelopecomacarta-que-havia-sido-escrita-pro-falecido-a-quem-ela-dedicava-muito-ressentimento num saco de papel e levar pra casa.

Em casa, finalizaria o ritual: jogaria as cinzas no vaso sanitário e daria descarga (ou num rio, quando possível), percebendo como aquilo tudo estava sendo levado água-a-fora. Depois, iria lavar o prato branco e guardar como a concretização de todos os eventos espinhosos que estavam - ANTES - incrustrados no corpo. Ela deveria guardar o prato em algum lugar e nunca mais usá-lo pra nada. Seria como uma lembrança, um bibelô. Não um utilitário. 

O RESULTADO

Eu havia pedido ao filho que me enviasse mensagens pelo WhatsApp dando notícias da mãe. Passados pouco mais de quinze dias da consulta, ele me manda o seguinte recado: 

"Boa noite  a dona bronislava pediu pra avisar  que fez o que era pra fazer no cemitério deu tudo certo."  E emendou: " a dona bronislava pediu  pra perguntar se  daria pra saber se vai dar negócio logo para a casa. Ela pediu pra perguntar sobre a venda." 

Claro.  Se eu propus um diálogo que foi interpretado como mágico, obviamente eu deveria saber sobre a ambicionada venda da casa dela. Algo como as cartomantes e ciganas fazem.  Eu, que assinalei pra eles que era mais pajé que técnico, obviamente saberia sobre o futuro, inclusive dos negócios. Talvez até receitasse remédios que serviriam pra aparecer um bom comprador...

Tenho que reciclar minha interlocução, cuidando mais da audiência...

-o-




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