Armando Henrique
Norman
As
medidas preventivas individualizadas fazem parte das estratégias dos sistemas
de saúde para reduzir as doenças e minimizar seus efeitos. A introdução, porém,
de várias práticas médicas preventivas têm conduzido ao excesso de Medicina ou
“medicalização”.
Medicalização é o nome
que se dá a um processo de diagnóstico e atuação médica em que questões históricas,
sociais, ambientais e familiares são deixadas de lado na análise de um
paciente. Todos os seus problemas são reduzidos artificialmente a uma questão
médica e compreendidos como doenças.
Assim,
a Medicina vem avançando sua jurisdição sobre aspectos sociocomportamentais
(tabagismo, obesidade) e biológicos (colesterol, hemoglobina glicosilada
[HbA1c], densitometria óssea, etc.) na esperança de reduzir a morbimortalidade
atribuída às doenças.
Dentro
dessa lógica, se observa o gradual rebaixamento dos pontos de corte, a partir
dos quais estão autorizadas intervenção e medicalização de fatores de risco. O
exemplo mais recente dessa tendência, nos Estados Unidos, foi o rebaixamento no
ponto de corte de 20% para 7,5% de risco de mortalidade cardiovascular que autoriza
a prescrição de estatinas (medicamento para reduzir o colesterol). Ou seja, a partir de parâmetros estabelecidos
por sociedades médicas norte-americanas, qualquer pessoa que, em dez anos,
tenha risco estimado de 7,5% de ter um problema cardiovascular deverá ser medicada.
Essa medida praticamente inclui todo homem acima de 60 anos, convertendo uma
grande parte da população em “doentes”, que necessitarão de medicamentos e de
acompanhamento médico e laboratorial vitalício.
Em
sintonia com essa visão, as metas para “tratamento” dos fatores de risco têm
sido ampliadas, requerendo cada vez mais o uso de medicação para alcançá-las
como é caso das metas de redução dos níveis de colesterol, hipertensão e
diabetes. Ao se ampliar o público usuário de um medicamento já existente no
mercado, expandem-se os lucros das indústrias farmacêuticas, sem o custo de
novas pesquisas.
Essas
medidas preventivas individuais, apesar de suas boas intenções, têm produzido
pseudodoenças, pois rotulam como “doentes” pessoas previamente sadias. Uma vez classificadas como
“doentes”, as pessoas tornam-se
“consumidoras” de tratamentos, terapias e medicamentos. O mais grave,
porém, é que o resultado dessa atuação precoce não está reduzindo as doenças e
mortes, mas sim produzindo mais fenômenos patológicos. Muitas pessoas acabam
sendo tratadas (sobretratadas) de doenças que nunca iriam desenvolver.
Um
exemplo clássico do sobrediagnóstico e sobretratamento é o rastreamento de
câncer. Muitos de nós apresentamos alterações patológicas em algumas células (alterações histopatológicas) que, em sua
maioria, não se desenvolveriam em câncer. Porém, ao rastrearmos a população
indiscriminadamente, rotularemos todas essas alterações como sendo câncer
(pseudodoença).1
Mas
qual a consequência disso? Vejamos o caso do câncer de mama.
Mulheres
assintomáticas submetidas a biópsia após mamografia alterada podem ter um achado histopatológico compatível com
câncer, mas que não irá progredir para câncer clinicamente manifesto. Mesmo
assim, muitas delas receberão o tratamento padrão que envolve a retirada do
tumor ou da mama e/ou radioterapia. Aquelas submetidas à radioterapia terão
maiores chances de desenvolver câncer de pulmão e insuficiência cardíaca.
Estima-se
que, para cada 2 mil mulheres rastreadas durante um período de dez anos, uma terá
sua vida salva e dez serão sobrediagnosticadas e sobretratadas, com os efeitos
colaterais decorrentes.2
Estudos que analisaram mais de duas décadas de rastreamento sistemático em países
como Estados Unidos, Canadá e Dinamarca concluíram que não há redução da
mortalidade por câncer de mama por meio do rastreamento com mamografia
independentemente de faixa etária.3,4,5,6
Esse avanço sobre
as pessoas que estão saudáveis e que não apresentam sintomas tem caracterizado
o excesso de Medicina e produzido danos iatrogênicos, ou seja, complicações e
prejuízos ao paciente, causados por tratamento médico desnecessário.
1. Orientações para
se evitar rastreamentos indiscriminados podem ser vistas neste site: http://www.uspreventiveservicestaskforce.org/
2. Gøtzsche PC, Jørgensen KJ. Screening for breast cancer with
mammography. Cochrane
Database of Systematic Reviews (2013);6:CD001877. DOI: 10.1002/14651858.CD001877.pub5.
3. Jørgensen KJ, Zahl PH, Gøtzsche
PC. Breast cancer mortality in organised mammography screening in Denmark:
comparative study. BMJ. 2010;340,c1241. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.c1241
4. Jørgensen KJ, Zahl PH,
Gøtzsche PC. Overdiagnosis in organised mammography screening in Denmark: a
comparative study. BMC Women’s Health. 2009;9:36. http://dx.doi.org/10.1186/1472-6874-9-36
5. Bleyer A, Welch HG. Effect of
three decades of screening mammography on breast-cancer incidence. N England J
Med. 2012;367(21):1998– 2005. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa1206809
6. Miller AB, Wall C, Baines CJ, Sun P, To T,
Narod SA. Twenty-five year follow-up for breast cancer incidence and mortality
of the Canadian National Breast Screening Study: randomised screening trial. BMJ. 2014;348:g366. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.g366
-o-
Armando Henrique Norman
·
Graduado em Medicina (UFPR).
·
Médico
de Família e Comunidade.
·
Doutor
em Antropologia Médica pela Durham University, Reino Unido.
·
Coordenador
técnico do Programa de Residência da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro.
Muito bom o texto... Gostaria de ler mais sobre o assunto ainda! Abraço, bom dia!
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