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Objetivos do blog Medicina Tem Limites

· Mostrar que o exercício da Medicina convive com impossibilidades, precariedades, dúvidas, fragilidades e inseguranças.


· Reafirmar a crença de que a grande maioria dos médicos, mesmo com as limitações próprias da atividade, trabalham movidos pelo desejo de aliviar o sofrimento das pessoas, aplicando com ética, responsabilidade e sensibilidade o conhecimento científico produzido pela inteligência humana.


· Contribuir para desmistificar a figura do médico, presente na cultura brasileira, como um ser acima da vida e da morte, que sabe tudo, que pode tudo e a quem tudo é permitido.

sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

EXCESSO DE MEDICINA: MAIS NÃO É MELHOR!


Armando Henrique Norman

As medidas preventivas individualizadas fazem parte das estratégias dos sistemas de saúde para reduzir as doenças e minimizar seus efeitos. A introdução, porém, de várias práticas médicas preventivas têm conduzido ao excesso de Medicina ou “medicalização”.

Medicalização é o nome que se dá a um processo de diagnóstico e atuação médica em que questões históricas, sociais, ambientais e familiares são deixadas de lado na análise de um paciente. Todos os seus problemas são reduzidos artificialmente a uma questão médica e compreendidos como doenças.

Assim, a Medicina vem avançando sua jurisdição sobre aspectos sociocomportamentais (tabagismo, obesidade) e biológicos (colesterol, hemoglobina glicosilada [HbA1c], densitometria óssea, etc.) na esperança de reduzir a morbimortalidade atribuída às doenças.

Dentro dessa lógica, se observa o gradual rebaixamento dos pontos de corte, a partir dos quais estão autorizadas intervenção e medicalização de fatores de risco. O exemplo mais recente dessa tendência, nos Estados Unidos, foi o rebaixamento no ponto de corte de 20% para 7,5% de risco de mortalidade cardiovascular que autoriza a prescrição de estatinas (medicamento para reduzir o colesterol).  Ou seja, a partir de parâmetros estabelecidos por sociedades médicas norte-americanas, qualquer pessoa que, em dez anos, tenha risco estimado de 7,5% de ter um problema cardiovascular deverá ser medicada. Essa medida praticamente inclui todo homem acima de 60 anos, convertendo uma grande parte da população em “doentes”, que necessitarão de medicamentos e de acompanhamento médico e laboratorial vitalício.

Em sintonia com essa visão, as metas para “tratamento” dos fatores de risco têm sido ampliadas, requerendo cada vez mais o uso de medicação para alcançá-las como é caso das metas de redução dos níveis de colesterol, hipertensão e diabetes. Ao se ampliar o público usuário de um medicamento já existente no mercado, expandem-se os lucros das indústrias farmacêuticas, sem o custo de novas pesquisas.

Essas medidas preventivas individuais, apesar de suas boas intenções, têm produzido pseudodoenças, pois rotulam como “doentes” pessoas previamente sadias. Uma vez classificadas como “doentes”, as pessoas tornam-se  “consumidoras” de tratamentos, terapias e medicamentos. O mais grave, porém, é que o resultado dessa atuação precoce não está reduzindo as doenças e mortes, mas sim produzindo mais fenômenos patológicos. Muitas pessoas acabam sendo tratadas (sobretratadas) de doenças que nunca iriam desenvolver.

Um exemplo clássico do sobrediagnóstico e sobretratamento é o rastreamento de câncer. Muitos de nós apresentamos alterações patológicas em algumas células (alterações histopatológicas) que, em sua maioria, não se desenvolveriam em câncer. Porém, ao rastrearmos a população indiscriminadamente, rotularemos todas essas alterações como sendo câncer (pseudodoença).1

Mas qual a consequência disso? Vejamos o caso do câncer de mama.

Mulheres assintomáticas submetidas a biópsia após mamografia alterada podem  ter um achado histopatológico compatível com câncer, mas que não irá progredir para câncer clinicamente manifesto. Mesmo assim, muitas delas receberão o tratamento padrão que envolve a retirada do tumor ou da mama e/ou radioterapia. Aquelas submetidas à radioterapia terão maiores chances de desenvolver câncer de pulmão e insuficiência cardíaca.

Estima-se que, para cada 2 mil mulheres rastreadas durante um período de dez anos, uma terá sua vida salva e dez serão sobrediagnosticadas e sobretratadas, com os efeitos colaterais decorrentes.2 Estudos que analisaram mais de duas décadas de rastreamento sistemático em países como Estados Unidos, Canadá e Dinamarca concluíram que não há redução da mortalidade por câncer de mama por meio do rastreamento com mamografia independentemente de faixa etária.3,4,5,6

Esse avanço sobre as pessoas que estão saudáveis e que não apresentam sintomas tem caracterizado o excesso de Medicina e produzido danos iatrogênicos, ou seja, complicações e prejuízos ao paciente, causados por tratamento médico desnecessário.


1. Orientações para se evitar rastreamentos indiscriminados podem ser vistas neste site:  http://www.uspreventiveservicestaskforce.org/

2. Gøtzsche PC, Jørgensen KJ. Screening for breast cancer with mammography. Cochrane Database of Systematic Reviews (2013);6:CD001877. DOI: 10.1002/14651858.CD001877.pub5.

3. Jørgensen KJ, Zahl PH, Gøtzsche PC. Breast cancer mortality in organised mammography screening in Denmark: comparative study. BMJ. 2010;340,c1241. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.c1241

4. Jørgensen KJ, Zahl PH, Gøtzsche PC. Overdiagnosis in organised mammography screening in Denmark: a comparative study. BMC Women’s Health. 2009;9:36. http://dx.doi.org/10.1186/1472-6874-9-36

5. Bleyer A, Welch HG. Effect of three decades of screening mammography on breast-cancer incidence. N England J Med. 2012;367(21):1998– 2005. http://dx.doi.org/10.1056/NEJMoa1206809

6. Miller AB, Wall C, Baines CJ, Sun P, To T, Narod SA. Twenty-five year follow-up for breast cancer incidence and mortality of the Canadian National Breast Screening Study: randomised screening trial. BMJ. 2014;348:g366. http://dx.doi.org/10.1136/bmj.g366

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Armando Henrique Norman
·      Graduado em Medicina (UFPR).
·      Médico de Família e Comunidade.
·      Doutor em  Antropologia Médica pela Durham University, Reino Unido.
·      Coordenador técnico do Programa de Residência da Secretaria Municipal do Rio de Janeiro.



Um comentário:

  1. Muito bom o texto... Gostaria de ler mais sobre o assunto ainda! Abraço, bom dia!

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